Hoje sonhei com você.
Não havia as duras palavras, o ódio e as lágrimas.
Havia só eu e você, como as coisas deveriam ser.
Hoje, e ontem, e amanhã, eu sinto uma dor que não posso lhe dizer.
Porque essa dor eu devo engolir a cada dia novamente,
com mais uma dose do cotidiano cinza desse mundo
que massacra toda tentativa de amar.
Eu levo esse amor como uma farsa
por que quem acreditaria nisso
que alguém tão vil,
tão sujo,
indesculpavelmente mesquinho,
possa ainda assim amar?
domingo, agosto 05, 2018
sábado, abril 14, 2018
As flores ceifadas de nosso jardim
Seis anos. Mais uma vez queria lhe dizer coisas que não posso. Digo-as à tela, a essas páginas esquecidas.
Durante esse ano minha dor e a ausência inescapável tiveram uma companhia, triste e inesperada. Nas palavras de quem sofreu talvez a mais dura das perdas, a perda de uma filha. Uma pequena flor, um broto arrancado, sem florescer, a raiz arrancada de uma Violeta que não pudemos ver crescer.
E quantas vezes não chorei na dor da partida da Violeta, na dor impossível de uma mãe que tão subitamente se vê sem a criança que acalentou com toda sua dedicação. Quantas vezes não vi nessa dor um espelho da minha.
O amadurecer de uma dor, o luto, é uma coisa que não se mede. Me indigno ainda e sempre com as réguas de uma medicina que quer marcar os dias e contar os prazos de nossa dor. 15 dias, é o tempo que nos é permitido sofrer (e olhe lá, porque você precisa trabalhar enquanto sofre).
Essa medida imensurável é um mistério que nos engole: quanto tempo vai demorar pra que eu consiga voltar a viver? E é uma ambiguidade terrível, que nas palavras da Marília vi tal como em mim mesmo. Será que poder viver novamente não é uma traição? Se a dor se transforma, não estou deixando para trás algo que deveria estar marcado a ferro e fogo, e sempre, e tanto? A gente se marca na pele para dizer que estamos marcados na alma. Uma marca que não se apaga.
E a gente sabe que não vai esquecer, que não vai passar. E não demora muito pra entender que a dor não vai embora. E olha um pouco indignado pro mundo, indignado porque, diferente da gente, ele não parou de girar. As pessoas vão vivendo suas vidas. No primeiro mês, todo mundo falava, todo mundo lembrava. Depois vai passando, vai ficando uma dor só nossa. E é como se tivéssemos parado no tempo.
De certa forma, sempre vamos ficar parados no tempo. Quando me pego chorando por um luto que já tem seis anos, como se tivesse sido ontem o dia da partida, já não me surpreendo que um pedaço meu ficou nessa dor. Que eu inteiro fiquei nessa dor, que não passa nem vai passar. A dor pode matar, e se a gente deixar ela nos leva embora. Eu vi, de longe, os seus pais partirem. E sempre me perguntei o quanto disso não era a dor que ficou. A dor que você já sabia que ia deixar pra trás quando partisse.
Eu vejo a força da Marília na luta por seguir a vida. Sem conseguir sorrir do mesmo jeito, mas sem se dobrar diante da dor. Uma coragem imensa, na qual me inspiro. Às vezes a gente já nem sabe mais porque resiste, mas resiste. Tem um pedaço de vida na gente que teima em viver.
Escrever é uma forma de tentar sobreviver. E mais uma vez eu vi muito da minha dor, nos textos que iam tentando dar forma, dar sentido pra esse sofrimento. Todos os dias. Depois a cada mês. Depois, uma hora, acaba passando um dia sem. E aí a gente até se sente culpado. Como se estivesse esquecendo. Como se tivesse deixando pra trás aquela dor, que, parece, é a única coisa que sobrou pra gente se apegar. Se perdermos a dor, perdemos tudo que nos restou. A gente quase se sente culpado por estar vivo. E por ter deixado escapar um sorriso em algum momento. Como pude sorrir? Como pude deixar de escrever naquele dia, mesmo tendo lembrado, como pude deixar pra depois? Ou não escrever? A gente sente às vezes que se não fala disso está deixando o mundo esquecer, e deixando o que ainda temos daquela pessoa partir.
Às vezes dá vontade de não ter continuado. Às vezes a gente ainda é só dor. E, não, passar ela não passa. Mas é como se se diluísse nessa coisa chamada tempo, que queira ou não vai se infiltrando e comendo pelas beiradas. Quando arrancam as flores do nosso jardim, ele nunca mais é o mesmo. A gente pode plantar outras. A gente pode regar aquele espaço vazio com as palavras que destilamos dessa dor. A gente faz o possível para viver. Mas mesmo com o tempo se infiltrando, aos poucos, por entre essa dor que tudo toma. Mesmo com as coisas da vida lutando até arrancar um sorriso. Mesmo que de fora olhem e digam que a gente já tá melhor, quando a gente olha para dentro muitas vezes a certeza é de que não estamos. É como tentar diluir óleo jogando água no copo. Eles não se misturam. Permanece ali, inteiro. Escondida, mas viva, está essa dor.
Conseguir viver, apesar de tudo, talvez seja nossa melhor homenagem. Essas flores arrancadas de nosso jardim sempre terão ali seu lugar, onde nada mais vai crescer. Mas cultivamos sementes de esperança e de vida. E elas crescem também por vocês.
The powers that be
That force us to live like we doBring me to my kneesWhen I see what they've done to you
Well, I'll die as I stand here todayKnowing that deep in my heartThey'll fall to ruin one dayFor making us part
I found a picture of you, o-o-oh, o-o-ohThose were the happiest days of my lifeLike a break in the battle was your part, o-o-oh, o-o-ohIn the wretched life of a lonely heart
Now I'm back on the train, yeah
O-oh, back on the chain gang
Durante esse ano minha dor e a ausência inescapável tiveram uma companhia, triste e inesperada. Nas palavras de quem sofreu talvez a mais dura das perdas, a perda de uma filha. Uma pequena flor, um broto arrancado, sem florescer, a raiz arrancada de uma Violeta que não pudemos ver crescer.
E quantas vezes não chorei na dor da partida da Violeta, na dor impossível de uma mãe que tão subitamente se vê sem a criança que acalentou com toda sua dedicação. Quantas vezes não vi nessa dor um espelho da minha.
O amadurecer de uma dor, o luto, é uma coisa que não se mede. Me indigno ainda e sempre com as réguas de uma medicina que quer marcar os dias e contar os prazos de nossa dor. 15 dias, é o tempo que nos é permitido sofrer (e olhe lá, porque você precisa trabalhar enquanto sofre).
Essa medida imensurável é um mistério que nos engole: quanto tempo vai demorar pra que eu consiga voltar a viver? E é uma ambiguidade terrível, que nas palavras da Marília vi tal como em mim mesmo. Será que poder viver novamente não é uma traição? Se a dor se transforma, não estou deixando para trás algo que deveria estar marcado a ferro e fogo, e sempre, e tanto? A gente se marca na pele para dizer que estamos marcados na alma. Uma marca que não se apaga.
E a gente sabe que não vai esquecer, que não vai passar. E não demora muito pra entender que a dor não vai embora. E olha um pouco indignado pro mundo, indignado porque, diferente da gente, ele não parou de girar. As pessoas vão vivendo suas vidas. No primeiro mês, todo mundo falava, todo mundo lembrava. Depois vai passando, vai ficando uma dor só nossa. E é como se tivéssemos parado no tempo.
De certa forma, sempre vamos ficar parados no tempo. Quando me pego chorando por um luto que já tem seis anos, como se tivesse sido ontem o dia da partida, já não me surpreendo que um pedaço meu ficou nessa dor. Que eu inteiro fiquei nessa dor, que não passa nem vai passar. A dor pode matar, e se a gente deixar ela nos leva embora. Eu vi, de longe, os seus pais partirem. E sempre me perguntei o quanto disso não era a dor que ficou. A dor que você já sabia que ia deixar pra trás quando partisse.
Eu vejo a força da Marília na luta por seguir a vida. Sem conseguir sorrir do mesmo jeito, mas sem se dobrar diante da dor. Uma coragem imensa, na qual me inspiro. Às vezes a gente já nem sabe mais porque resiste, mas resiste. Tem um pedaço de vida na gente que teima em viver.
Escrever é uma forma de tentar sobreviver. E mais uma vez eu vi muito da minha dor, nos textos que iam tentando dar forma, dar sentido pra esse sofrimento. Todos os dias. Depois a cada mês. Depois, uma hora, acaba passando um dia sem. E aí a gente até se sente culpado. Como se estivesse esquecendo. Como se tivesse deixando pra trás aquela dor, que, parece, é a única coisa que sobrou pra gente se apegar. Se perdermos a dor, perdemos tudo que nos restou. A gente quase se sente culpado por estar vivo. E por ter deixado escapar um sorriso em algum momento. Como pude sorrir? Como pude deixar de escrever naquele dia, mesmo tendo lembrado, como pude deixar pra depois? Ou não escrever? A gente sente às vezes que se não fala disso está deixando o mundo esquecer, e deixando o que ainda temos daquela pessoa partir.
Às vezes dá vontade de não ter continuado. Às vezes a gente ainda é só dor. E, não, passar ela não passa. Mas é como se se diluísse nessa coisa chamada tempo, que queira ou não vai se infiltrando e comendo pelas beiradas. Quando arrancam as flores do nosso jardim, ele nunca mais é o mesmo. A gente pode plantar outras. A gente pode regar aquele espaço vazio com as palavras que destilamos dessa dor. A gente faz o possível para viver. Mas mesmo com o tempo se infiltrando, aos poucos, por entre essa dor que tudo toma. Mesmo com as coisas da vida lutando até arrancar um sorriso. Mesmo que de fora olhem e digam que a gente já tá melhor, quando a gente olha para dentro muitas vezes a certeza é de que não estamos. É como tentar diluir óleo jogando água no copo. Eles não se misturam. Permanece ali, inteiro. Escondida, mas viva, está essa dor.
Conseguir viver, apesar de tudo, talvez seja nossa melhor homenagem. Essas flores arrancadas de nosso jardim sempre terão ali seu lugar, onde nada mais vai crescer. Mas cultivamos sementes de esperança e de vida. E elas crescem também por vocês.
The powers that be
That force us to live like we doBring me to my kneesWhen I see what they've done to you
Well, I'll die as I stand here todayKnowing that deep in my heartThey'll fall to ruin one dayFor making us part
I found a picture of you, o-o-oh, o-o-ohThose were the happiest days of my lifeLike a break in the battle was your part, o-o-oh, o-o-ohIn the wretched life of a lonely heart
Now I'm back on the train, yeah
O-oh, back on the chain gang
segunda-feira, janeiro 15, 2018
Dolores
Não sei se alguma vez me senti tão triste pela morte de uma pessoa que nunca conheci pessoalmente. Mas hoje me sinto como se tivessem arrancado um pedaço da minha vida; esse pedaço era Dolores O'Riordan, uma voz com quem cresci e que me ajudou a me tornar a pessoa que sou, me deu um pedaço do tecido com o qual costurei a vida.
Ela era jovem, e
subitamente não é mais. Estancou no tempo, está morta e deixou
três filhos além de uma legião de fãs, entre os quais um bom
tanto de gente deve estar triste e sentindo órfão como estou.
Eu sempre desprezei
muito o sentimento de idolatria e tietagem. Não gosto de ficar
investigando detalhes da vida de pessoas públicas que admiro; nunca
vi sentido em um autógrafo. E talvez por estranhar essa bizarra
sensação de proximidade com as “estrelas” da indústria
cultural, algo que chega a níveis doentios na tal “sociedade do
espetáculo”, eu acho estranho me sentir assim.
Nunca troquei uma
palavra com Dolores, ela nunca soube da minha existência. E, no
entanto, sua voz me consolou em momentos tristes, difíceis, de ódio
mais do que a voz de qualquer pessoa que eu ame. Suas músicas foram
a trilha sonora de momentos felizes; de desilusões amorosas. Da
minha adolescência e da minha vida adulta. Uma presença constante, desde meus doze anos.
Eu também tive
momentos de afastamento, quando gostei menos dos “novos” discos,
primeiro o
“Bury the hatchet”
em 99 (quando eu tinha quinze anos e Cranberries já era uma “velha
banda” na minha curta vida) e depois ainda mais o “Wake up and
smell the coffe”. Depois, com o tempo fiz as pazes e aprendi a
gostar das novas músicas, que foram encontrando seus significados
nas minhas experiências. Os próprios membros do Cranberries tiveram
seu “tempo”, dissolvendo o grupo entre 2003 e 2009. Tal como
eles, não aguentei ficar muito tempo longe da banda.
Pouquíssimos músicos
ressoaram tanto e tão significativamente nos meus ouvidos. Gosto de
muitas músicas diferentes, mas consigo facilmente destacar quatro
bandas as quais me apeguei de um jeito muito mais intenso: Queen,
Cranberries, Garbage e Sleater Kinney. As músicas as quais sempre
recorro, como uma volta para casa. Como um abraço de um amigo quando
você precisa.
As causas da morte de
Dolores não foram divulgadas. Mas certamente foram terríveis e
brutais, para tirar uma vida tão jovem e florescente, aos 46 anos,
num quarto de hotel durante uma viagem para gravações. Como é
inevitável, eu, como qualquer pessoa, me pergunto. A maldita palavra
ressoa como uma pergunta na minha cabeça quase ao mesmo tempo em que
recebo o baque pesado e inesperado da notícia de sua morte.
Suicídio? Com fama, talento, fortuna e filhos que eram “a sua
salvação”, como ela mesmo dizia, Dolores teve sua cota de merda
desse mundo asqueroso. Abuso sexual na infância que levou a
transtornos alimentares, um “colapso” e, depois, um diagnóstico
– mais um número da nossa lista – de transtorno bipolar. Em 2014
e 2016 foi acusada de agressão em supostos ataques maníacos.
Não sei nada sobre sua
vida pessoal, nem quero na verdade, transformar isso em objeto de
especulação. Mas sei que a morte de Dolores, um dos maiores
talentos musicais de sua geração e em minha opinião a mais linda
voz dela, muito provavelmente, é mais uma dos infindáveis crimes
dessa sociedade doente. Não são coisas "casuais" ou infortúnios que lhe ocorreram. São crimes bárbaros, são a marca desse mundo. Ela sofreu a brutalidade que é reservada às mulheres. Sua mente, adoecida, foi submetida aos procedimentos monstruosos que criamos. A bizarra forma como a arte é explorada como uma mercadoria de alta lucratividade, e os artistas muitas vezes são destruídos por essa engrenagem da indústria cultural, também cobrou um preço alto de Dolores. Ela disse que, no auge da fama do Cranberries, ela se sentia “realmente doente e estragada... eu me sentia como um fantoche, um objeto." De uma forma ou de outra, ela, como tantos, foi sendo envenenada de uma forma que ninguém nunca mais deveria ser. E eu lamento, por tudo isso, ainda mais sua tristíssima morte.
Once you ruled my mind,
I thought you'd always be there.
And I'll always hold on to your face.
But everything changes in time,
And the answers are not always fair.
And I hope you've gone to a better place.
Cordell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I hope you've gone to a better place.
Time will tell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I know that you've gone to a better place.
Cordell [x7]
Your lover and baby will cry,
But your presence will always remain,
Is this how it was meant to be?
You meant something more to me,
That what many people will see,
And to hell with the endless dream.
Cordell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I hope you've gone to a better place.
Time will tell,
Time will tell,
We all will depart and decay,
And we all will return to a better place.
Cordell [x7]
I thought you'd always be there.
And I'll always hold on to your face.
But everything changes in time,
And the answers are not always fair.
And I hope you've gone to a better place.
Cordell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I hope you've gone to a better place.
Time will tell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I know that you've gone to a better place.
Cordell [x7]
Your lover and baby will cry,
But your presence will always remain,
Is this how it was meant to be?
You meant something more to me,
That what many people will see,
And to hell with the endless dream.
Cordell,
Time will tell,
They say that you've passed away,
And I hope you've gone to a better place.
Time will tell,
Time will tell,
We all will depart and decay,
And we all will return to a better place.
Cordell [x7]
Eu pensei que você sempre estaria ali.
E eu sempre lembrarei de seu rosto.
Mas tudo muda com o tempo,
E as respostas não são sempre justas.
E eu espero que você tenha ido para um lugar melhor.
Cordell,
O tempo dirá,
Disseram que você morreu,
E eu espero que você tenha ido para um lugar melhor.
O tempo dirá,
O tempo dirá,
Disseram que você morreu,
E eu sei que você foi para um lugar melhor.
Cordell [x7]
O seu amante e seu filho irão chorar,
Mas sua presença permanecerá para sempre,
Era assim que deveria ser?
Você significava algo a mais para mim,
Mais do que muitas pessoas verão,
E para o inferno com o sonho sem fim.
Cordell,
O tempo dirá,
Disseram que você morreu,
E eu espero que você tenha ido para um lugar melhor.
O tempo dirá,
O tempo dirá,
Todos nós iremos partir e decair,
E nós vamos todos retornar para um lugar melhor.
Cordell [x7]
quinta-feira, janeiro 11, 2018
Queria que um grito
bastasse
para dizer tudo que não
me cabe
tudo o que nesse mundo
de merda
diz não à vida, à
liberdade
Mas há muito para um
grito
e minha voz, rouca, já
nem gritar consegue
sufoca
Abafa em meio ao caos,
em meio à ordem
imposta.
Em meio ao quinhão que
te cobram,
e já não resta um
tostão
nem para pagar o amargo
trago
que ao fim do dia te
faria esquecer a dor
e anestesiar os
músculos cansados
e a mente entorpecer
para que possa ao menos
parar de pensar
e começar outro dia.
Não há grito que dê
conta de dizer essa dor
Não há dor que dê
conta de doer essa vida
Não há vida que dê
conta de morrer essa morte
que já há muito tempo
se tornou
maior e mais forte
do que você possa
dizer
Quando morre mais um
e mais um e mais um
caindo ao teu lado
já não há mais
surpresa
e nem grito, nem
lágrima
um corpo morto que cai
como o teu, que
continua
já não há mais
grito, nem dor, nem surpresa
nem morte há mais,
porque já é igual a vida
E já não há o que
dizer
e por isso não digo
quarta-feira, janeiro 10, 2018
a mim
Pare e diga foda-se
foda-se a tudo ao redor
que te acossa, te
importuna
te exige e não te
larga, e te apressa
Diga a tudo que é
necessário, nem que seja às vezes
pertecencer-se.
Exigir, em um mundo que
nada nos permite
que ao menos nós, essa
coisa degradada
agredida, explorada,
estreitada, destruída,
mas que ainda devemos
chamar de “eu”,
que essa coisa nos
pertença.
Que possamos tomá-la,
rejeitar o mundo que a
demanda por inteiro
E dizer não
foda-se você
o que você quer de mim
o que você pensa de
mim
o que você pensa que
eu quero de mim
ou de você
ou de qualquer coisa
que seja
foda-se.
Eu preciso de mim.
Sem satisfações,
sem explicações,
sem demandas,
sem exigências.
É preciso um pouco de
ilusão nessa vida
a ilusão, por um
segundo,
de que podemos
pertencer a nós mesmos
e a mais ninguém
segunda-feira, janeiro 08, 2018
I- Infância
Demorei um bom tempo
até descobrir o que me incomodava mesmo, quer dizer, que tipo de
gente eu era afinal. Quando moleque, já era uma criança esquisita.
Claro que não era assim que me chamavam os adultos, com seus bem
treinados eufemismos cretinos para tentar ridiculamente mostrar uns
pros outros que sabem fingir que não veem o óbvio. Ou que o óbvio
não é aquilo, mas outra coisa complicada que inventaram para ficar
no seu lugar. As crianças, que ainda não tinham sido estragadas por
esse hábito social que é a base dessa montanha de merda a que deram
o nome de “civilização”, eram mais honestas ao menos. Elas sim
diziam francamente que eu era esquisito.
Não é que as
crianças fossem melhores, longe de mim achar isso. As crianças são
mais nítidas, são transparentes, como se não tivessem ainda tido
tempo de nutrir essa espessa camada com a qual cobrimos a monstruosa
verdade do que queremos. A sua crueldade se vê a céu aberto, elas
dizem como desprezam os demais, como querem apenas satisfazer suas
próprias necessidades mais imediatas e individuais; e quando o
fazem, são duramente repreendidas pelos adultos, que vão aos poucos
lhes incutindo a capacidade, ou melhor, a imprescindível habilidade
de mentir para o “bom convívio”. Quando se cresce, a dura
sinceridade das crianças já está devidamente esmagada sob um
disfarce que apresentamos como nossa cara; até que nós mesmos
acreditamos que somos essa mentira que apresentamos para os demais.
Não satisfeitos em
mentir uns para os outros e para si mesmo sobre o que são, os
adultos também precisam mentir a si mesmos sobre as crianças e o
que elas são, dizendo que são “puras”, “ingênuas”, “sem
maldade”. Essa última mentira, repetida à exaustão, e cujas
frequentes tentativas de se desmentir são combatidas com a maior
violência e virulência, é absolutamente necessária para manter a
absurda ideia de que, no fundo, somos todos “bons”, e não feitos
essencialmente daquilo que se convencionou chamar de “egoísmo” e
condenar de maneira hipócrita – enquanto nossa “criança
interior” continua cuidadosamente o cultivando.
De todo modo, quando
era criança o meu convívio social se dava, em grande parte, com
outras crianças, que com sua brutal sinceridade e sua autêntica
crueldade tão tipicamente humanas me fizeram logo perceber – e não
poder esquecer disso por um segundo sequer – que eu era uma criança
esquisita. As formas de polidez, os eufemismos e os atenuamentos para
falar da minha condição particular ficavam reservados aos adultos
em seus diálogos: professores, pais, seus amigos. Enquanto isso, eu
recebia ostensivamente de meus colegas, essas “flores primaveris”
do jardim-da-infância, a implacável marca da distinção, como a
marca a ferro na testa do louco ou do criminoso do vilarejo para
dizer a todos quem ele é.
Músicas eram cantadas
para mim com a intenção de me humilhar. Agressões e provocações
eram um passatempo que trazia muita alegria para as crianças ao
redor. O prazer “puro” e “ingênuo” de se sentir superior ao
inferiorizar outro ser humano, esse se manifestava sem disfarces na
relação das demais crianças comigo. Contrariamente ao que se pode
pensar, eu creio que devo muito a esses pequenos carrascos: me
ensinaram de forma precoce e inequívoca o sentido da humanidade e do
convívio social.
O constante castigo
por se ser como se é pode apresentar diferentes resultados em quem
os sofre. É claro que nada daquilo me agradava, e não deixava de
sofrer sentindo em mim um grande alvo para as zombarias infantis de
todos os colegas. Mas, bom, eu não era o único. Sempre há outros
desajustados, outros esquisitos para serem vitimados pela ditadura da
“normalidade social”. Se na boca dos adultos o comportamento duro
das crianças com seus colegas “diferentes” ganha uma condenação
formal, por baixo desse discurso há um sentimento de gratidão: a
crueldade, que muitas vezes ganha em intensidade e ousadia na fase
adolescente, cumpre um papel social indispensável nesse mundo. Em
primeiro lugar, ensinar a quem não se encaixa qual é o seu lugar.
Em segundo lugar, tentar conformá-los aos estreitos padrões aceitos
socialmente. Claro, mesmo quando a humilhação impele aos excluídos
que se conformem para poderem ser aceitos, nem sempre eles conseguem.
Mesmo assim, cumprem um papel: o de exemplo.
Era esse o caso de uma
outra criança que teve a desgraça de habitar a mesma escola que eu.
Pedro tinha uma lesão cerebral congênita, o que lhe trazia muitas
marcas distintivas que as demais crianças simplesmente não
conseguiriam “deixar barato”. O déficit intelectual, se fosse o
único sintoma, poderia ter ficado despercebido, pelo menos, quem
sabe, até a adolescência. Mas o rosto de Pedro trazia estampada a
diferença; seus movimentos, mais lerdos e imprecisos, e realizados a
um custo muito mais elevado do que os das outras crianças, eram os
trejeitos “perfeitos” para que alguns colegas que já mostravam o
talento para buscar avidamente a admiração de todos e o “brilho”
público pudessem fazer o seu “show”. E, assim, imitavam Pedro
arrancando gargalhadas das demais crianças, que se regozijavam rindo
do menino defeituoso.
Outra característica
de Pedro que garantia grande alegria aos pequenos era sua
irritabilidade, e a forma como se comportava ao ficar nervoso.
Corando como um pimentão, ele soltava grunhidos, se agitava todo e
batia os braços e mãos. Às vezes se tornava mais agressivo e
arremessava objetos, o que dava um ar a mais de “desafio” a quem
se postava como a estrela do show ao ir lidar com o estranho animal
que intrigava a todos, como o domador de leões do circo. Lembro-me
de uma vez, que passando esses limites, a frustração de Pedro
chegou à sua bexiga e o fez urinar nas calças. É claro que foi o
delírio das crianças, e apenas com muito tempo e repreensões da
professora o apelido de “mijão” deixou de ser o nome mais
utilizado para designar Pedro.
Ele não me inspirava
simpatia, mas aprendi muito vendo esse colega que dividia comigo o
infortúnio de ser desajustado e, para minha sorte, fazia com que eu
quase parecesse normal em contraste com ele. Éramos, de fato,
muitíssimo diferentes, mas na realidade pouco importa. O que
importava mesmo é que não éramos iguais aos outros. E ele,
atormentado por sua estranheza, procurava em vão formas de se
adaptar, de parecer mais normal. Pedro não queria ser diferente, e,
obviamente, os adultos deviam lhe dizer bobagens como “você não é
diferente”, ou “você é especial”, tentando alimentar nele a
ilusão de que poderia em algum momento fazer parte do mundo das
crianças que lhe humilhavam. A crueldade infantil, como sempre, era
consciente ou inconscientemente ignorada pelos adultos.
Eu rapidamente entendi
que o caminho mais rápido para conseguir ser aceito era mostrar a
sua própria capacidade de humilhar alguém outro. Essa opção
estava ao alcance da minha mão: tivesse eu um dia qualquer, bem no
meio do pátio ou dentro da sala, à vista de todos, acabado com
Pedro ou com alguma outra criança desprevenida, as coisas certamente
mudariam para mim. Ainda que não fosse aceito, teria imposto ao
menos um respeito, uma hierarquia que facilitaria minha vida. Eu não
era uma criança mirrada e fraca, o que me deixava também aberta a
possibilidade de escolher um de meus algozes e torcer-lhe o braço,
enfiar sua cara na terra, abaixar-lhe as calças ou fazer qualquer
outra pequena crueldade que o destituísse de seu posto de
“superior”. Poderia passar a ser uma criança temida, ao menos, o
que me daria uma vida mais tranquila na escola.
É claro que naquele
momento eu não tinha uma clareza tão racional disso tudo; não
havia ainda compreendido que a crueldade e a humilhação têm suas
próprias regras bem estabelecidas não apenas entre as crianças –
quando começamos a aprendê-las – mas também no mundo adulto. De
toda a forma, eu já sentia tudo isso, e lembro-me mesmo de
considerar essas possibilidades. Por que então não fiz nenhuma
delas?
Bom, a verdade é que
rapidamente tomei um caminho muito distinto de Pedro: o seu
sofrimento gerado pela humilhação alheia lhe instigou à triste
conclusão da auto-humilhação. Quanto mais lhe diziam inferior,
mais ele acreditava, mais invejava as crianças normais e desejava
ser aceito por elas. Essa é, eu creio a regra fundamental para que o
mundo se mantenha assim: os humilhados admiram seus humilhadores,
desejando ser eles; e enquanto desejarem ser eles, aceitarão as
humilhações procurando um caminho inexistente para que possam, como
nos seus sonhos, passarem a ser eles mesmos os humilhadores. Toda a
crueldade que despejavam em Pedro ele acrescentava àquela que já
existia dentro dele, e a cultivava secretamente. Ninguém o percebia,
mas eu passei a ver como aquela criança estúpida e chorona
lentamente se transformava naquilo que o estavam moldando.
Incapaz de encontrar
uma criança a quem ele mesmo pudesse agredir, insultar ou fazer algo
para se mostrar ou sentir superior, Pedro procurou outros lugares
onde pudesse expressar seu ódio e sua crueldade que se alimentavam
cotidianamente daquilo que as outras crianças faziam com ele. Os
desenhos que fazia se tornavam mais violentos, sempre com pessoas se
partindo, sangue, objetos pontiagudos, gritos. Nas suas brincadeiras
solitárias, ele descontava em bonecos ou blocos de montar o seu
ódio. Batia com força os brinquedos e muitas vezes era advertido
pela professora por estragar algum que fosse mais delicado. Era ali
que ia se depositando o ódio e a frustração de Pedro, enquanto
crescia seu triste desejo por ser normal, por ser como as crianças
que lhe humilhavam.
Mas é claro que o
poço que estava sendo cavado nele era fundo demais para que apenas
desenhos e bonecos pudessem extravazar tanto rancor. Mesmo porque o
pensamento de Pedro era pouco dado a abstrações, era limitado e
concreto; ele precisava ver diante de si sofrimento que expiasse sua
própria dor. Então ele procurou coisas vivas. No pátio, destruiu
um formigueiro com violência, pisoteando. Seu rosto tinha uma
expressão de satisfação que nunca havia visto. Passou a gastar seu
tempo em minuciosas buscas por insetos em meio à terra e as plantas,
e quando os encontrava exercitava sua crueldade destruindo-os da
forma mais criativa que pudesse. Os adultos não se davam conta,
talvez muito preocupados em manter sua historinha de que as crianças
eram todas boazinhas, talvez tentando fingir que Pedro poderia ser
“mais um” com seus colegas e que logo iriam parar os episódios
de perseguição.
Mas logo eles
perceberam que havia “algo errado”. Foi quando Pedro pegou um
martelo de bater carne escondido da cozinha de sua casa e resolveu
partir para algo “mais elaborado”, vendo o que poderia fazer com
um dos filhotes que sua cachorra havia parido recentemente. Eu
imagino a satisafação de Pedro ao ouvir os ganidos do filhote
enquanto o destruía com aquele martelo. De alguma forma, deveria ser
como tirar um peso de seu ombro, das próprias “marteladas” que
havia recebido tantas vezes dos colegas. Quase não vi mais Pedro
depois disso. Ele acabou saindo da escola, sei lá o que inventaram
que seria “melhor” para ele. Dúvido, de toda forma, que tenham
conseguido fazer alguma coisa por aquela criança. O que se
expressava ali naquela escola, e depois nele descontando da forma que
pudesse em insetos e bichos, era uma lei do mundo dos homens.
Comigo as coisas foram
diferentes, eu não era como o Pedro. Não porque fosse melhor, claro
que não. Apenas muitos anos depois fui entender que, na realidade,
havia muito em comum na forma como “sobrevivemos” àquilo. Talvez
eu tenha tido apenas sorte – será? – de que eu não precisava de
martelos de verdade ou de bichinhos mais indefesos para expiar meu
ódio e frustração. Eu nunca tentei ser aceito, talvez porque
consegui de alguma forma ir assimilando ali mesmo, naquelas precoces
primeiras lições, que aquilo tudo era podre, podre demais. E que,
se era verdade que não conseguiria escapar – o que, é claro, eu
ainda não sabia – eu ia encontrando recursos dentro de mim para
explorar esse ódio. Eu passei a desprezar os que me humilhavam; não
queria ser como eles, nem queria ser aceito. De alguma forma, era
motivo de orgulho para mim ser excluído: em minha cabeça, isso
significava que eu era melhor que eles.
Esse desprezo era o
meu “martelo”, na verdade: pude sobreviver sem precisar ver um
filhote despedaçado sob meus golpes, mas por outro lado talvez o
ódio que Pedro expiava naqueles golpes fosse muito mais simples,
muito mais autêntico e purificador. Como essa crueldade “pura”
das crianças, a forma que ele encontrou era também mais limpa, mais
direta, porque era assim que ele lidava com o mundo. O meu ódio se
fincou em mim e ali construiu sua fortaleza, e dali nunca mais saiu.
sábado, janeiro 06, 2018
Eu fico fritando –
talvez na melhor das hipóteses, porque às vezes já nem isso me
sinto muito capaz de fazer – e tentando entender o que aconteceu.
Como aconteceu, quando aconteceu. Como eu fiquei desse jeito. Eu olho
pra trás e pra agora, tento fantasiar qualquer coisa que me
entusiasme para que eu possa acreditar numa resposta mágica, pelo
menos isso, uma esperança de que não precisa ser sempre assim.
Será que aconteceu uma
hora que nem percebi nada? E aí de repente eu estava assim. Será
que foi aos poucos? E aí fico revendo os anos, as escolhas, as
coisas que fazia e que fiz. Será que foi ali, naquele momento
decisivo em que ela morreu e “tudo mudou”? Mas, o pior de tudo é:
será que não tem nada de “ficar assim”, será que na real eu
sempre fui assim, e o presente é só uma cela suja de onde não
consigo olhar para fora, e na qual fantasio que há um lugar longe
dali onde tudo é bom, bonito e... sei lá, esperançoso ao menos. E
cada presente sempre foi assim, mas quando essa cela se move aos
poucos junto comigo ao longo dessa nossa abstração chamada “tempo”
eu não consigo perceber que ela se move e deixa do lado de fora tudo
o que acredito que eu deveria ser, fazer, viver.
Não – eu repito pra
mim – não é isso. Eu lembro oras, lembro das coisas que fazia.
Ora, eu escrevia, aqui mesmo, eu refletia, eu planejava, eu
enfrentava as coisas. Eu tocava. Eu me interessava. Eu me apaixonava
pela vida, pelos seus desafios, pelas suas novidades, seus mistérios.
É claro que há um “fora” desse lugar em que me meti. É claro
que eu vim de lá.
Veio? Nas suas tardes
intermináveis de infância, nas quais a descoberta da palavra
“tédio” foi quase uma epifania para expressar uma angústia
infantil sempre presente. A incapacidade de levar qualquer tipo de
paixão até o segundo degrau de uma longa escada. O precoce ódio da
humanidade, a descoberta de sua insuficiência.
As amizades, você diz.
Elas eram uma diferença substancial. Esse isolamento impenetrável
de onde não consigo me comunicar com ninguém; essa impaciência com
tudo, todos, comigo, com os outros: isso não era assim. Ou era?
Claro, havia tempo livre, havia distração a rodo. Isso, é nítido,
é sim um presente que as crianças podem desfrutar. A ausência de
preocupações sérias. Ainda que, em retrospectiva, algum adulto que
pudesse passear pela sua cabeça infantil certamente poderia ficar
assombrado com algumas questões bem pouco infantis que já te
atormentavam. A carapaça que você criou pôde ter brechas pelo
contato com os semelhantes. O que acontece que nem os que mais se
assemelham agora te parecem semelhantes? Por que não há contato?
As palavras já não te
saem. São mecânicas, forçadas, se as consegue a custo arrancar dos
dedos. São obrigatórias. A vida é um beco sem saída. Se consegue
se perguntar, logo o ímpeto esmorece frente à brutal muralha de um
cinza infinito, que pinta uniformemente, o fora e o dentro se
confundindo, a vida e a morte indistintas. Às vezes chora, e quer
pedir desculpas por todos com quem invariavelmente falhou. Os amigos
que abandonou, as namoradas que decepcionou, a família a qual não
pertence, os camaradas a quem trai com seu interior ressecado de onde
não brota nenhum futuro. Nenhuma insignificância pode te salvar de
si mesmo. Dorme e já não consegue sonhar. Corta-se, e não escorre
sangue. Tua vida gangrenou. E, balbuciando esse lixo, agora já
apenas por uma ilusória busca de sentido, de alívio, já não sabe
o que faz. Nem porque.
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