terça-feira, outubro 09, 2012

Lo que importa: uma elegia a Camila Radwanski




“Há os que lutam um dia, e são bons;
Há os que lutam um ano, e são melhores;
Há os que lutam muitos anos, e são muitos bons;
Porém, há os que lutam toda uma vida; estes são os imprescindíveis.”
- Bertolt Brecht

“Cuando yo muera, no me llores en la tumba fria.
Buscame en las luchas del pueblo, soy viento de libertad”
- Anônimo

Minha geração nasceu em uma época triste; uma época de ceticismo, descrença e desesperança. Crescemos e formamos nossa consciência em um tempo em que se dizia que o pior do mundo era o único mundo possível. Nos ensinaram a crer nisso. Nos ensinaram que o melhor era pensar em nós mesmos, em nossa sorte. Que a vida era cada um por si.

Não foi a primeira vez que o mundo tornou-se sombrio para os que tinham esperança. Em todos os momentos em que isso ocorreu, os revolucionários foram tão fundamentais quanto sempre. Para nadar contra a corrente, para manter viva a chama-piloto que poderia incendiar o mundo quando ele se enchesse de indignação novamente. Para semear para o futuro a colheita que nunca veriam.

Camila foi desta geração. Nasceu e cresceu em uma camada social privilegiada, cercada pelos filhos dos ricos, pelo quais não passava a pobreza do mundo. Mas eram parte da miséria também, pois não é só aos trabalhadores, aos explorados que atinge a miséria. A pobreza de nossa época é psíquica, é moral, é subjetiva, e de todos os tipos. Os meios mais abastados materialmente sofrem também desta miséria, que enche a vida de um vazio insuportável.

Ela nunca se ligou aos que optavam por uma vida de mais do mesmo. Por seus caminhos tortuosos e difíceis, Camila penou pela miséria do mundo, a conheceu e sofreu com ela. Não se conformava, não aceitava, não abaixava a cabeça. Era uma pária naquele meio, como os que anseiam por mudança verdadeira têm sido uma pária neste mundo recente. Era uma estranha no ninho que procurava, com seus próprios meios, lutar contra uma vida de miséria. A miséria material, esta ela não conheceu. As outras, estavam com ela o tempo todo; viveu mergulhada nesta miséria psíquica de nosso tempo. Por formas e caminhos para os quais ainda não dispomos de instrumentos para mapear, ela foi profundamente golpeada por esta miséria; forjou sua própria subjetividade na luta contra isto.

A luta revolucionária, para alguém que penou tanto ao se deparar com tanta brutalidade, é um caminho quase natural. E ela fez disso seu sentido. Quando a conheci, cada fibra do seu ser já era tomada pela ambição revolucionária, de virar esta miséria de ponta-cabeça a golpes duros e bem orientados. Não há quem me convença de que não foi isto que a orientou durante a parte mais difícil e mais gratificante de sua vida; de que foi esta meta que a manteve viva, pulsando, lutando até o último segundo.



O sofrimento do mundo penetrou nas veias da Camila. Tornou seu psiquismo doente, abalado, destroçado em alguns aspectos. Como o corpo de um trabalhador que exerce as funções mais penosas se gasta, se destrói aos poucos, tornando-se uma máquina rota muito antes do tempo, assim penso que aconteceu com o psiquismo desta pessoa a quem tanto amei. Não tenho meios para prova-lo, mas é o que sinto. Que a podridão do mundo, a mesma que a encheu de vigor para lutar, é a que lhe dava pesadelos e vozes, enchia seus dias de dor e tristeza.

Ela não se rendeu. Do pouco e intenso tempo que a conheci, esta é uma certeza que carrego. Cada gesto seu era uma preparação para o futuro revolucionário. Quando muitos em volta acreditavam que Camila estava longe da luta, eu discutia com ela cotidianamente e em detalhes os nossos planos, os equívocos, o que era necessário mudar para avançar em nossa pequena organização revolucionária. Através de meus pensamentos e ações, em cada conversa nossa, ela aportava para a construção de uma organização que se prepara para mudar o mundo. Em cada conversa nossa, ela preparava a si mesma para poder se colocar de corpo e alma a serviço da revolução; de resto, a vida não valeria o esforço de ser mantida.

Nos anos que precederam, Camila foi ativa de diversas formas nesta luta. Quanto aos sonhos que tinha para um mundo melhor – do que gostaria de fazer se fosse livre – também soube colocá-los a serviço desta luta. Queria fazer cinema, fotografar, criar. Fez com isto, por exemplo, esta belíssima foto para a capa da segunda revista Estratégia Internacional Brasil, publicação da LER-QI.



Quando estudava na PUC, participou da criação do grupo de mulheres Pão e Rosas, que se colocava a tarefa de lutar contra todas as formas de opressão que as mulheres sofrem, mas tomando em suas mãos em primeiro lugar as demandas das mulheres trabalhadoras e a partir de uma perspectiva marxista. Em toda a sua militância, a questão da luta contra a opressão às mulheres e aos homossexuais sempre foi um dos aspectos que destacou sua atuação. Não apenas porque Camila sofreu estes dois tipos de opressão na pele, mas fundamentalmente por seu instinto de sempre se ligar aos setores mais explorados e oprimidos, uma marca dos melhores revolucionários.

Um dos legados importantes que nos deixa para continuarmos nossa luta são as traduções que fez para o livro “Lutadoras: histórias de mulheres que fizeram história”, para nossas revistas, jornais etc. 



Vinha sendo pioneira em abrir a discussão em nossa organização com mais profundidade sobre os direitos dos LGBTTI e a opressão contra este setor da sociedade. Uma de suas contribuições que me marcou foi o texto escrito junto com a camarada Fernanda sobre a aprovação do casamento igualitário para homossexuais na Argentina: “Casamentohomossexual é aprovado na Argentina: E no Brasil, quando vamos arrancar estedireito?”

A sua condição de saúde, contudo, sempre foi um obstáculo muito concreto ao seu desenvolvimento pleno como militante revolucionária, e isso era algo que a deixava profundamente triste. Seguiu lutando, como pôde. Recentemente, vinha discutindo mais solidamente como voltar à militância plena e organizada na LER-QI. Sempre que a encontrava este assunto não faltava nas nossas conversas, era uma angústia sua e minha pensarmos como poderia atender a todas as exigências de uma vida militante. Andava propondo de militar a partir de nossa editora, tomando mais tarefas de tradução, porque isso era algo que poderia fazer em casa, mesmo se não estivesse bem. Enfim, em cada palavra sua, na forma como tratava a LER-QI como “nós”, mesmo quando estava afastada, tudo deixava claro que a luta revolucionária era o pilar fundamental para lutar por uma vida que, apesar de todos os percalços, mantinha de pé a luta para seguir adiante.

Além da saudade imensa e incontornável de sua presença insubstituível, Camila deixa um bocado de lições aos revolucionários. Que, se Trotsky dizia, nem só de política vive o homem, podemos dizer até mesmo que nem só de política vive um partido. É necessário, e isso aprendia com Camila sempre, sabermos ouvir e entender as pessoas. Aprendemos, ao olhar sua vida e sua luta para se dedicar até o fim à revolução, o que é verdadeiramente ser um revolucionário. O que a matou, no fim, foi ver-se impossibilitada de entregar-se tão completamente quanto era seu desejo. “Lo que importa”, dizia seu álbum de fotos com retratos de lutas nas quais tomou parte, com obras de arte em homenagem à revolução. Camila sabia que, em um mundo devastado e quando nós mesmos nos encontramos devastados, o que realmente importa é lutar por um mundo novo e uma humanidade livre; é entregar nossa vida a esta causa, que é o melhor que uma pessoa pode fazer hoje. Ela deu sua vida a esta causa, integralmente. Traduziu em cada fibra do seu ser o sentido das palavras de Trotsky em seu discurso de fundação da IV Internacional: “O partido exige-nos uma entrega total e completa. Que os filisteus continuem buscando sua própria individualidade no vazio; para um revolucionário, doar-se inteiramente ao partido significa encontrar a si mesmo. Sim, nosso partido nos toma por inteiro. Mas, em compensação, nos dá a maior das felicidades, a consciência de participar da construção de um futuro melhor, de levar sobre nossas costas uma partícula do destino da humanidade e de não viver em vão”.



Aos seis meses de sua partida, continuamos carregando, hoje e sempre, a tristeza infinita por sua morte; mas esta dor é herdeira de sua certeza: se esta vida vale a pena ser vivida, é para lutar com todas as forças para que ela se transforme em algo distinto.

Camila Radwanski presente! Hoje e sempre!


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