segunda-feira, setembro 19, 2011

Diário da Argentina: 15º Congresso Mundial de Psiquiatria: hace falta el marxismo!




Primeiro de tudo: de quem e para quem é o congresso?

O Congresso Mundial de Psiquiatria em Buenos Aires deve reunir mais de dez mil psiquiatras. Realiza-se no requintado centro de convenções do Hotel Sheraton, e sua inscrição custa nada menos que 150 dólares. As mesas, quase todas, exceto umas poucas em espanhol, realizam-se em inglês, sem tradução. Fica a pergunta para vocês: quem participa do congresso? Mais uma dica: entre os milhares de participantes, vi aqui e ali uns dez ou, sendo otimista, vinte negros. Quem tem acesso à psiquiatria?

Dentre as muitas e muitas mesas que havia, tentei pegar as que pareceriam mais críticas ao abominável cenário da medicina do capital. Já deixo aqui no começo um esboço de uma crítica a este modelo de medicina, escrita por meu camarada Gilson Dantas, que converge com o que penso. É claro, a crítica à medicina do capital é extensa, profunda, e vou esboçar aqui mais algumas coisinhas.

A normalidade e a psicopatologia: horizontes estreitos da fenomenologia

A primeira mesa que vi falava sobre aspectos, digamos, mais "teóricos", alcançando aquele ponto restrito em que alguns poucos psiquiatras se preocupam em teorizar. A maioria dos trabalhos acadêmicos não trás nada além de estatísticas e quantidades. Então, a princípio, foi uma boa surpresa que o primeiro palestrante não mostrasse nada disso. O nome da apresentação, em tradução livre, era "rumo a uma definição das desordens mentais: questões conceituais". Como pontos mais progressistas, havia o questionamento de que os psiquiatras não estão nem aí para as definições de doença mental (sim, pasmem: aqueles responsáveis por tratar as doenças mentais NÃO ESTÃO NEM AÍ PARA PENSAR O QUE SÃO AS DOENÇAS MENTAIS!!!)

Parênteses: como funciona a medicina psiquiatrica padrão

O artigo do Gilson acima citado fala bem sobre isso: de fato, quem dá a letra da maioria das decisões tomadas pelos médicos são os laboratórios. Há uma função essencial destas empresas cumprida pro profissionais chamados de "propagandistas". Estes são tipo os lobistas do corpo a corpo da multibilionária indústria farmacêutica. Sua função é peregrinar pelos consultórios particulares enchendo a cabeça dos médios de pesquisas patrocinadas pelos laboratórios para os quais trabalham que, de maneira muito "isenta e imparcial" (afinal, não é assim que nos dizem que a ciência procede?) "provam" que tal remédio no qual se investiu alguns milhões é a melhor cura para a doença X, e nada poderá ser melhor do que ele. Mas não se engane, os milhões investidos em pesquisas e desenvolvimento não são nada perto da verba destinada à "divulgação". Então, por via das dúvidas, caso estas maravilhosas pesquisas não os convençam, os propagandistas estão com ser arsenal mais poderoso: um grande estoque de presentes, bajulações e mimos baratos, caros e caríssimos para agradar seus clientes. Para que vocês não duvidem de quão longe vai isso, vou dar um singelo exemplo: viemos ao congresso eu, meu pai, meu irmão e sua namorada. Meu pai pagou minha passagem e minha inscrição no congresso e eu barganhei com o diabo para poder vir à Argentina conhecer de perto o PTS, prometendo comparecer mais ou menos ao congresso. Mas ele só pôde se dar ao luxo de pagar minha passagem e a nada amistosa inscrição, como forma de tentar me persuadir a voltar para o maravilhoso mundo da medicina, porque um propagandista simpático conseguiu que todas as outras passagens e inscrições fossem bancadas pelo laboratório para o qual trabalha! Entre outras coisas, já assisti uma palestra com ele sobre TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) no Hotel Mercure em São Paulo, com direito a um jantarzinho supimpa e um livrinho sobre esta doença. Tudo na conta do laboratório que produz a Ritalina, único remédio para este diagnóstico um tanto quanto suspeito, mas que é uma tremenda doença da moda. Quão isento é o diagnóstico do seu psiquiatra? Aquele mesmo que não se importa com definições de doença mental e recebe agrado de propagandistas que lhe trazem pesquisas patrocinadas por laboratórios? Pensa aí...

(Fecha parênteses, voltemos ao psiquiatra "filósofo" da conferência...)

Bom, entre os outros aspectos progressistas, ele disse o óbvio, mas que para nossos médicos que pensam com o cérebro dos propagandistas não é tão óbvio assim: o conceito de "doença mental" (em inglês ele usava o termo "mental disorder") é carregado de valores morais, culturais e sociais! Pra quem é marxista, chega a ser bizarro pensar que alguém precisa ir a um congresso ouvir isso! Mais uma obviedade progressista: as doenças não são nem apenas biologicamente determinadas, nem apenas socialmente construídas, mas são uma combinação destas coisas. Esta aí até dá polêmica com um monte de psiquiatra! Em seguida ele questionou os diagnósticos do famoso e aberrante "manual" de psiquiatria adotado universalmente, o DSM, que está em sua quarta edição e logo terá a quinta. Acreditem ou não, os psiquiatras, além do lixo entuchado pelos propagandistas, também utilizam isto, que funciona assim: você tem uma lista de sintomas para cada doença, e se o paciente atinge um certo número de sintomas da lista: BINGO! Ele tem a doença! Tipo um "Cheklist"!
Daí, depois de criticar a definição ridícula do grande manual sagrado da psiquiatria, ele deu sua definição pela positiva. Não era das piores. Incluía a "interferência em atingir objetivos pessoais" e "um comportamento ou crença não sancionado culturalmente". O mais progressista, a meu ver, foi admitir que é uma questão cultural, social e, portanto, (ainda que ele não tenha colocado neste termo) histórica. O outro ponto progressista foi quando ele discutiu a intensidade dos sintomas, o "cut point", o limite entre o "normal" e o patológico. Admitiu, coisa que poucos psiquiatras fazem, que no fim das contas é arbitrário, que não há como não ser.
O cara que veio em seguida mostrou a tosquice total do método científico da nossa medicina. É o que se chama de "evidence-based medicine", a medicina baseada em evidências. É a miséria da fenomenologia: os psiquiatras vêem o que está diante do nariz deles. E o cara falava sobre ansiedade, sobre transtornos e como diagnosticá-los. Inovando, mostrou um gráfico, em que muita ansiedade era patológico, e muito pouca era patológico, fazendo uma bela curvinha em seu powerpoint. Brilhante!

O ápice da miséria desta perspectiva imbecil, a fenomenologia, um tipo de empirismo mais "sofisticado", se demonstrou com toda a clareza na mesa seguinte que assisti, cujo nome era "Psiquiatria, religião e espiritualidade: aspectos clínicos". O cidadão que abriu fez uma fala de que a psiquiatria sempre estigmatizou a religião (verdade) e que era hora de mudar a relação que tinha com esta (verdade também). E daí foi de uma merda à outra, fazendo uma apologia da religião dizendo que tanto ela quanto a psiquiatria "querem o bem" e que era hora de "trabalharem juntas para o bem comum"!!! O que leva a tamanha barbaridade ser proferida por um "especialista" em uma mesa de congresso? Simples: o pragmatismo míope do seu método epistemológico e terapêutico. A apresentação a seguir, de um brasileiro, demonstrou exatamente o que leva a isto. Falava sobre religião e alcoolismo no Brasil, e demonstrava com seus diversos números, estatísticas e quantidades (lembrem-se do ditado imbecil: os números não mentem) que pessoas religiosas tem menos problemas de alcoolismo. ORA, QUEM DIRIA?!? O sensacional é que o estudo dele se detém exatamente aí, não vai um milímetro além. O que importa, pra esta abordagem tacanha, não é o que, como funciona, o que significa. O que importa é que funciona! Só faltou ele dizer que é bom prescrever religião pros pacientes!

E será que esta merda é o melhor que este congresso tem a oferecer? Ninguém tem uma visão um pouco menos imbecil?!? Milhares de psiquiatras e nada de bom a dizer? Calma! Há algo um pouco melhor, mas antes...

Intervalo 1: a burocracia sindical argentina tenta lavar sua cara




Eis que no fim da primeira mesa ouço um longínquo "Bum! BUM! BUM!" e me pergunto "Que pása?" Será que há uma apresentação de dança? E eis que à porta do Hotel vejo meia dúzia de gatos pingados da Associação dos Agentes de Propaganda Médica (Sim! Isso mesmo! O sindicato daqueles propagandistas que mencionei lá em cima!) fazendo isso aqui. Estão batendo uns bumbos descompassadamente e dando uns panfletos pra quem está por ali. Em seu uniforme do sindicato está ostensivamente colocado o símbolo da CTA, uma central sindical dominada pela burocracia peronista. Nesta matéria sobre sua manifestação no site, cinicamente dizem: "La medida de fuerza será llevada acabo con una marcha y escrache donde se no se descarta la interrupción de las propias actividades del Congreso de Psiquiatría auspiciado por la industria farmaceutica." HÁ! Até parece! Seria sensacional se levassem a sério suas próprias palavras, causando no meio de um congresso internacional! Seria facílimo fazer isto e o efeito seria estrondoso! Mas é óbvio, é pura demagogia.
A causa de seu ato é mais do que justa: demissões, práticas antissindicais, péssimas condições de trabalho. Mas se sua intenção não era fazer nada de efetivo, por que estavam lá panfletando? (diga-se de passagem, fui até eles, pedi seu panfleto, li e fiquei ali parado, com um crachá do congresso. Ninguém se deu ao trabalho de trocar uma palavra comigo sobre o que estavam fazendo. Só no bumbo descordenado). Estavam ali porque de uma forma ou de outra, o maravilhoso fenômeno do sindicalismo de base pressiona as burocracias a darem respostas às suas bases. Precisam fingir que organizam mobilizações e lutas, porque os trabalhadores vêem o que acontece na Kraft, no metrô, na Pepsico, em Zanon, na Disco e em tantos outros lugares. Pra saber mais sobre esta impressionante organização dos trabalhadores pela base, contra a patronal e as burocracias, recomendo ver o site do Nuestra Lucha, o jornal que o PTS impulsiona junto com os trabalhadores independentes do sindicalismo de base.
Dá o que pensar a burocracia sendo forçada a organizar este tipo de coisa, mesmo que seja um ato tão tosco que foi muito parecido com uma propaganda de um laboratório que teve na hora do almoço (com a diferença que na propaganda as pessoas sabiam tocar os instrumentos adequadamente). Quando há luta de classes, a potencialidade de uma política de exigência e denúncia a partir de uma localização estratégica no movimento operário é imensa...




Intervalo 2: passeando no maravilhoso shopping center da saúde mental

Como podemos ler na notícia do sindicato, o congresso é "auspiciado" pela indústria farmacêutica, como tudo o mais que os médicos fazem nesta vida (até as festas da medicina da USP, com chopp de graça, são patrocinadas pelos laboratórios). Isso quer dizer que os corredores do congresso são um grande mercadinho, tipo uma feira de rua mesmo, com cada barraquinha (estande) cheia de propagandistas vendendo seu peixe. Alguns pôsteres anunciam atividades no congresso que vão falar dos remédios. E, como não podia deixar de ser, tem os presentinhos. Depois do almoço hoje fui numa das salas onde ficam concentrados dezenas de standes (além dos que ficam em TODOS os corredores). Tomei um café por conta de um laboratório, ganhei uma destas garrafas de água (destas de atleta) de outro. Depois, usei a internet em um terceiro. Ainda ganhei de meu pai um caderno, uma caneta, um porta-lápis, um marcador de livro e uma caneta marca-texto. Amanhã, acho que vou levar uma sacola pra recolher tudo e depois quando voltar pra São Paulo abro uma barraca de camelô...

Perspectivas menos sombrias: psiquiatria transcultural (ainda hacé falta el marxismo!)

Mais pro fim do dia, pelo menos tive uma esperança de que nem tudo é horror. Fui numa mesa mais acalentadora com o título de "Efeitos duradouros do colonialismo na saúde mental de povos pós-coloniais". Muito interessante, depois vou explicar melhor pq estou já ficando com muito sono, mas o lance é pensar como os diferentes contextos culturais afetam a perspectiva psiquiátrica. Porque a perspectiva fenomenológica é tão cretina que sequer consegue pensar em algo tão elementar quanto isso! A tal psiquiatria transcultural tem florescido muito no Canada, um dos poucos redutos em que ainda sobra algo do estado de bem estar social e que há um influxo imenso de imigrantes e refugiados. Houve uma apresentação sobre a psiquiatria e os povos originários da Australia, uma sobre o conceito de paranóia cultural e o diagnóstico equivocado de esquizofrenia em pacientes negros nos EUA e uma sobre imigrantes negros no Canada. Muito interessante, mas vou desenvolver isto em outro post porque estou cansado (o facebook me distrai muito!). Este pedaço foi o filé do primeiro dia, e vai dar pano pra manga, mas quem sabe isso não incentiva as pessoas a voltarem para ver este blog com mais frequência (e seu autor a escrever com mais frequência!).

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