sábado, fevereiro 08, 2014

Militantes (para você que não me respondeu)

O partido exige-nos uma entrega total e completa. 
Que os filisteus continuem buscando sua própria individualidade no vazio; 
para um revolucionário, doar-se inteiramente ao partido 
significa encontrar a si mesmo.  Sim, nosso partido nos toma por inteiro. 
Mas, em compensação, nos dá a maior das felicidades, a consciência de participar 
da construção de um futuro melhor, de levar sobre nossas costas 
uma partícula do destino da humanidade e de não viver em vão.

- Leon Trotsky, discurso de fundação da IV Internacional, 1938

Os homens fazem a sua própria história, 
mas não a fazem como querem, 
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha
 e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,
 legadas e transmitidas pelo passado.

- Karl Marx, O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte, 1852

Me convenci de que o socialismo não só era possível, mas também necessário, há dez anos. Contudo, demorei ainda mais cinco nos para chegar à conclusão de que não basta querer o socialismo e defendê-lo em minhas atitudes individuais ou minhas ideias - é necessário ter uma estratégia fundada na teoria e provada na realidade para que possamos chegar nele, e fazer de cada dia uma escrupulosa batalha para que possamos traduzir esta estratégia em táticas, em ações feitas em função de um plano maior, para que consigamos derrubar um inimigo que é imenso, e que não vai ceder sem dar todas as suas forças para resistir à queda.

Não fui eu, nem muito menos a organização na qual milito que inventamos a estratégia que adotamos nesta guerra. Na verdade, não foi nenhuma mulher ou homem isoladamente. Esta estratégia é, ela mesma, o fruto da luta de milhões de trabalhadores, explorados, lutadores, que deram suas vidas em combate contra o capital. Há, dentre estes, alguns que tiveram a oportunidade de poder sintetizar com grande sucesso os erros e acertos, a teoria e a estratégia que pode nos ajudar a avançar. Dentre estes não podemos esquecer os nomes de Marx, Engels, Lenin, Trotsky e Rosa. Todos estes, em maior ou menor grau, passaram apuros e sofreram riscos e privações para poder nos legar este conhecimento, esta luta. Trotsky e Rosa foram assassinados por gente que não matou apenas a eles, mas também estrangulou os partidos que ajudaram a construir com a militância de suas vidas. Marx viu sua filha morrer de fome; Lenin viveu na clandestinidade e sofreu um atentado que quase o matou. São esforços e privações que estão muito além do que hoje sofremos.

Nem por isto tornar-se um revolucionário hoje é uma tarefa fácil.Quando pela primeira vez tomei contato com a organização na qual eu milito hoje, a Liga Estratégia Revolucionária - Quarta Internacional, nem me passava pela cabeça a ideia de dedicar minha vida à construção de um partido revolucionário, não só no Brasil, mas em escala mundial. Me parecia, como ainda parece à maioria da humanidade hoje, uma ideia absurda, maluca, completamente desprovida de inteligência ou de entendimento sobre a realidade. Era um punhado de gente - literalmente um punhado - a maioria alguns estudantes de origem pequeno-burguesa, que se propunha a nada menos do que derrubar o Estado e instaurar uma ditadura da classe trabalhadora. "Que viagem!", pensava eu.

Eu não vou me propor aqui a tentar explicar para ninguém porque esta ideia não me parece mais absurda, porque não tenho a pretensão de convencer alguém em um post de blog: a mim, foram necessários cinco anos para que me convencesse. E não foram poucos destes que hoje chamo de camaradas - alguns que infelizmente já não estão mais em nossas fileiras - que conversaram comigo pacientemente. Mas não foram apenas eles que me convenceram: foi principalmente o fato de que eventualmente tive a humildade de admitir para mim mesmo que eu não sabia nada da história da luta da classe trabalhadora, e que tudo o que eu repetia como um papagaio era fundado em duas coisas - a primeira, como já disse acima, no aparente absurdo da ideia que eles propunham. A segunda, em repetir os preconceitos e falsas verdades que haviam me enfiado goela abaixo sem que eu nem percebesse.

E eu li, li, e li. Procurei ler aqueles que estiveram nas revoluções, que participaram e escreveram sobre elas. Li os anarquistas, e descobri uma carência de fundamentos teóricos que levaram a práticas trágicas. Li John Reed e descobri que antes disso nada sabia sobre os dez dias que abalaram o mundo, ou sobre quem era e o que faziam aqueles que se denominavam bolcheviques. Mas não me contentei com esta versão apenas e fui ler o que diziam os inimigos dos trabalhadores: li mais de mil páginas do historiador liberal inglês Orlando Figes, que procura sustentar - através de uma minuciosa pesquisa extremamente bem documentada - a posição de que os bolcheviques eram assassinos sanguinários. Li as polêmicas de Marx e Bakunin, de Rosa e Bernstein, de Lenin e os mencheviques, de Trotsky e os stalinistas, e também com os liberais. Li os autonomistas: John Holloway e sua teoria de mudar o mundo sem tomar o poder; Hakim Bey e suas zonas autônomas; Cornelius Castoriadis e sua crítica quase metafísica ao trotskismo. Li Malatesta, Kropotkin, Maurício Tragtenberg., Makhno, Victor Serge. E li ainda muito pouco.

E, ainda sim, a leitura não foi tudo o que bastou para me convencer. Uma das coisas que aprendi lendo - e depois fazendo - com Marx, foi que a prática é o critério da verdade. E que podemos ler uma montanha de coisas e isto não torna nossa prática revolucionária. Mas ao longo dos anos conheci a prática de muitas correntes que se propõem a atuar na realidade para transformá-la. Nunca tive o espírito diletante, antes peco pelo contrário, fazendo antes de pensar o suficiente. E foi assim que comecei a ser um ativista, em 2004, entrando de cabeça em uma greve que em um mês foi capaz de limpar da minha cabeça uma porção do lixo que dezenove anos de liberalismo burguês haviam enfiado e marcado na minha concepção de mundo. O que ficou, no entanto, foi suficiente para me afastar do marxismo e me jogar em uma agrupação populista semi-autonomista, o Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL). Nesta agrupação, acompanhei com desconfiança o processo de fundação do PSOL. Fui vendo, ao longo dos anos, a tragédia do PT - um partido feito por trabalhadores em luta contra a ditadura que foi traído por um punhado de burocratas social-democratas - ser repetida na farsa do PSOL - um pequeno racha daquele dirigido por parlamentares que repetiam sua estratégia de "socialismo" parlamentar. Vi a sua messiânica Heloísa Helena defender leis que atacavam os trabalhadores, militar ao lado da Igreja contra o direito das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo, e em seguida abandonar o barco porque ela perdia seu espaço de caudilha dentro dele e procurava ventos mais à direita. Mas, muito antes que tudo isto se concretizasse, já tinha abandonado os companheiros do MTL em seu projeto fracassado ao sentir que não era este o caminho.

O lixo burguês que me foi enfiado na cabeça, como falei, não se dissipou todo de uma vez - nem se dissipará por inteiro enquanto eu viver, afinal, não posso ser uma pessoa que não pertence a seu tempo. Uma das piores heranças desta porcaria ideológica era o individualismo, a ideia de que somos algo tão especial que imaginar que alguém possa ter algum tipo de autoridade sobre você é uma aberração. É a individualidade mais burguesa que se possa imaginar, a ideia da auto-suficiência. E foi vítima dela que virei um anarquista e fui militar no Movimento Passe-Livre, onde tudo se decidia por consenso e imperava a mentira de que não há dirigentes (cujo resultado é criar pequenos burocratas que dirigem sem serem legitimados pelo coletivo). A esta ideia do "indivíduo livre" somavam-se outros preconceitos que me colocaram lá: de que os partidos inibem a criatividade, a individualidade, transformam seus adeptos em repetidores de palavras dos dirigentes, sem espírito crítico ou capacidade de pensarem por si próprios. Esta ideia é ima gêmea daquela da individualidade "a todo custo", e que remete profundamente às ideias que os românticos - primeiros artistas da época burguesa - criaram lá no século XVIII e XIX.

Mas a realidade é persistente, e foi me mostrando o quão mesquinha era este tipo de militância, e que tinha em si a mesma prepotência que eu carregava quando era um adolescente petista: substitui a história por mistificações e preconceitos - quem diria, burgueses. Foi mais um ano ali para que eu aprendesse isto. E depois, quantas experiências me foram necessárias: a luta em solidariedade ao povo de Oaxaca, que numa pobre província do México conseguiu se organizar para derrubar seu governo, tomar as emissoras de televisão e criar seu governo próprio, dirigido por organizações sindicais e populares. A esquerda brasileira, por incrível que pareça, parecia um túmulo: ninguém falava disto. Os sindicatos dirigidos pelo PSTU calavam; os parlamentares do PSOL calavam. Apenas um pequenino grupo, quase inexistente, colocou suas pequenas forças para fazer de tudo o que pudesse para apoiar aquela luta. E eu me juntei a eles. Era a LER-QI. Depois, em 2007, a greve da USP me mostrou na prática como se portavam os "libertários" autonomistas que dirigiam tudo como um punhado de "burocratinhas mirins". E a realidade me ensinou a necessidade da auto-organização, tal como eu lera nos escritos sobre a revolução russa. E, naquele momento, apenas uma pequenina organização - quase sem influência na greve - defendia esta importante tradição. Esta era a LER-QI.

Foram anos que me mostraram como a teoria e a prática distintas, revolucionárias, se fundiam, não sem erros - e muitos! - em uma das organizações políticas que conheci. E, quem diria, era uma organização pequenina, cheia de estudantes e ainda engatinhando para ter trabalhadores em suas fileiras. Fruto de uma expulsão do PSTU em 2000, que, juntando-se à tradição de camaradas argentinos do PTS, fundaram em apenas cinco pessoas esta organização. Sim, era penosa a escolha de militar em uma organização tão pequena. Mas não era por acaso que era numa organização tão pequena se expressava o melhor da tradição revolucionária, e olha que eu não estava em qualquer lugar deste país tão grande: eu estava na USP, um lugar bastante propenso a servir de ninho para organizações de esquerda. A tradição do trotskismo principista, que representa em nossa época a continuidade dos melhores ensinamentos de séculos de luta da classe operária e dos explorados de todo mundo, teve que nos ser importada da Argentina, e coube a este punhado de cinco camaradas, que não se intimidaram diante da absurda dificuldade de sua tarefa, tentar transformar estas ideias em força material. E, como disse Brandão, um dos fundadores deste grupo, no recente encontro de trabalhadores que fizemos e que reuniu 800 pessoas, se em doze anos aqueles cinco puderam chegar a estes 800, podemos fazer em muito menos tempo que estes 800 possam ser milhares.

Não, eu não queria ter que partir de tão longe, mas os homens não fazem a história como querem, mas sim como lhes foi dado fazer a partir da herança do passado. O passado recente é de derrotas colossais da classe trabalhadora. Por isto partimos de tão longe. E isto, sim, implica em sacrifícios. Não como os daqueles que foram assassinados ou viveram na clandestinidade. Pelo menos ainda não. Mas queremos preparar mulheres e homens à altura deste tipo de tarefa, deste tipo de sacrifício. Pessoas que tenham a consciência de que nosso sacrifício pessoal, ou daqueles que amamos, é um preço pequeno a se pagar por uma esperança que seja de emancipar a humanidade desta espessa camada de miséria que a cobre. Miséria material, moral, espiritual, intelectual, física. Uma miséria que as futuras gerações não merecem, como nós não teríamos merecido.

E, sim, às vezes abrimos mão de nossos fins de semana; pode até ser, em alguns casos, de quatro domingos por mês. Temos que construir bases materiais para nossa militância, formas de divulgar nossas ideias. A burguesia tem o mundo à sua disposição: as televisões, os provedores de internet, a posse das redes sociais, os jornais, as imprensas, as escolas, as igrejas...enfim, tudo. Nós, com muito custo, com uma parte do salário de cada um de nossos militantes, conseguimos colocar de pé nossas casas socialistas, onde fazemos reuniões, palestras, debates, cursos, festas. Conseguimos, com muito suor, manter um site, alguns blogs (como este), nosso jornal, que levamos e tentamos vender àqueles em que temos a confiança de que podem estar ao nosso lado para defender estas ideias. Estes jornais, quando os vendemos, não tiramos lucro algum dele; pelo contrário: é nossa contribuição financeira voluntária que é capaz de fazer com que estas ideias se materializem em papel, que levamos clandestinamente para vender nas fábricas, que vendemos aos nossos contatos nas universidades, escolas, locais de trabalho. Nossos militantes passam madrugadas em claro, entre um dia de trabalho e outro, para poder diagramar, escrever, revisar este jornal. Ele é, para nós, com todas as suas debilidades, um motivo de orgulho. E nos orgulhamos de levá-lo embaixo do braço para vender àqueles em que confiamos que poderemos discutir estas ideias.

Discutimos, pacientemente, com cada pessoa próxima a nós porque achamos que podemos e devemos mudar nossas vidas, nosso mundo. Que vale a pena militar em uma pequena organização com a ambição de construir um partido mundial que possa derrubar cada Estado burguês que oprime a humanidade em cada canto deste planeta. E também lutamos, aos tropeços, com tantos erros, com tantas dificuldades, para poder mudar em nós mesmos o que queremos mudar no mundo inteiro. Para poder fazer de nossa organização um pequeno embrião de uma sociedade distinta, onde as pessoas possam se relacionar de forma diferente. Isto implica em desenvolver a habilidade de se auto-criticar sempre que possível. Em fazer balanços duros de nossos erros, de ver onde carregamos ainda os preconceitos que queremos destruir. Em como podemos ajudar nossos camaradas. Aprender a ouvir críticas e saber que elas não servem para nos desmoralizarmos, mas para podermos ser pessoas melhores. E que nos tornamos pessoas melhores para poder lutar mais para mudar este mundo.

Erramos, e muito. Somos jovens, poucos, inexperientes. E as críticas que recebemos, se feitas de boa fé, são para nós um grande presente, pois nos permitem avançar e revolucionar a nossa organização e a nós mesmos, que somos os tijolos que constroem seu edifício. Contudo, também temos que nos acostumar a ouvir calúnias, críticas feitas com o propósito de destruir, de desmoralizar, críticas feitas por ressentimento ou mesquinhez. E, infelizmente, às vezes temos que ouvir estas críticas de pessoas que julgamos que poderiam estar ao nosso lado nesta luta. Às vezes, são golpes duros. Às vezes vemos um camarada valioso abandonar a militância. São muitos os motivos que podem levar a isto e temos que ser serenos para avaliar os nossos problemas, as pressões da vida, poder aprender com nossas derrotas também. E não nos derrubarmos. Como disse Che, um camarada que deu sua vida pela luta, mesmo que com uma estratégia incorreta, precisamos aprender a ser duros; mas sem perder nossa ternura jamais. É difícil. Muitos de nós endurecem e perdem a ternura. Muitos não conseguem endurecer. Mas continuaremos tentando. Continuaremos combatendo todas as críticas feitas para nos destruir, aprendendo com os adversários de boa fé, e avançando para dar a contribuição que pudermos nesta difícil e imprescindível tarefa de emancipar a humanidade. E seremos cada vez mais.   

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