quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Exorcismo dos resíduos

Nesta semana comecei algo que há muito tempo adiava, e que provavelmente mudará minha vida bastante. E que, espero, possa ajudar outras pessoas a mudarem as suas. Eu comecei a estudar psicanálise, com o intuito - entre outros - de poder clinicar.

A aula inaugural, dada pela professora Teresa, com experiência de décadas de atendimento no SUS, me fez pensar muito sobre esta decisão e este mundo no qual me proponho a ajudar as pessoas a conhecerem e melhorarem seu sofrimento psíquico. Ela, que hoje trabalha no projeto "Braços Abertos" da prefeitura, falou muito sobre como é tentar ajudar as pessoas a partir das instituições públicas.

No começo da década passada, houve no Brasil uma reforma psiquiátrica. Algumas práticas medievais foram abolidas, entre elas os hospitais psiquiátricos onde os pacientes ficavam confinados como em presídios, frequentemente submetidos a torturas e maus tratos. Em seu lugar, vieram os CAPS (Centro de Atendimento Psico-Social), que são hospitais-dia. Ou seja, os pacientes não ficam internados, apenas os frequentam durante o dia. Houve inúmeras mudanças no sentido de humanizar o atendimento a pacientes psiquiátricos.

Contudo, o que a fala de Teresa revelou é que tais mudanças foram insuficientes em todos os sentidos. Estas mudanças não afetaram a lógica de um tratamento fundado em uma moral do produtivismo, na qual as pessoas são meramente as portadoras de uma mercadoria imprescindível para o capitalismo: sua força de trabalho. O olhar de nossa sociedade sobre o sofrimento psíquico está fundado neste valor - como colocar as pessoas "em ordem" para que possam novamente trabalhar, produzir, vender seu trabalho.

Claro, Teresa não colocou nestas palavras. Mas ela falou sobre o conflito entre a institucionalidade e o tratamento. Falou sobre os manuais que dizem que os pacientes devem ser acolhidos e tratados deste ou daquele jeito. Falou sobre a necessidade que se cria de distinguir a equipe de saúde (os "normais") dos pacientes (os "malucos") através de diferenças nas roupas, nos banheiros que usam, na comida que comem, nos talheres que usam. A falta de tempo para conhecer, entender, viver as diferenças psíquicas do paciente, passando com ele pelo tempo que seja necessário para que avance de acordo com seu ritmo e sua vivência. Todo este tempo é comprimido pelas regras da normatização da saúde mental, pela psiquiatria que medicaliza tudo de forma pasteurizada, para que os pacientes possam "melhorar logo" para produzir e não ser mais um "peso morto" para a sociedade.

A reforma psiquiátrica, ao mudar tudo externamente para manter a mesma lógica de funcionamento, inverteu o lado do confinamento. Ouvimos nossa professora contar sobre as pessoas que são confinadas do lado de fora do CAPS, como o paciente que, por se comportar de maneira inadequada, podia entrar apenas na hora de sua sessão. Ou outro, que por mais de seis meses vinha, tomando três ônibus, e sentava-se no meio fio, do lado de fora do prédio. E só foi atendido quando um estagiário passou meses a seu lado, do lado de fora do prédio. Ela falou sobre um morador de rua, que cobria-se com papelões, e morava em frente à secretaria de saúde. Confinado nas ruas. Quantos não estão confinados nas ruas? Confinados na solidão? Confinados na invisibilidade?

Teresa falou sobre a extrema especialização do tratamento psíquico, que levou a que, quando ela trabalhava com pacientes soro-positivos (portadores de HIV), se falasse sobre um "perfil dos portadores de HIV", da mesma forma que hoje se fala de um "perfil dos usuários de drogas". Toda a especialização torna-se, assim, uma padronização, que destitui o paciente de suas experiências singulares e trata-o como mais um na fila. Esta ideia da normatização às pressas e a todo custo ficou particularmente evidente quando Teresa falou sobre as entrevistas de triagem, feitas quando o paciente ingressa para seu tratamento no CAPS. O olhar viciado do médico, do psicólogo, passa a pensar, a cada palavra que é dita pela pessoa a sua frente, na única função: "para onde vou encaminhá-lo?". Tratamento de drogas, violência, etc. Cada problema tem um especialista para onde se encaminha o problema adequado à sua formação. Fragmenta-se um psiquismo, enquadra-se ele em um problema a ser resolvido, encaminha-se para o especialista correto. Próximo! Assim se monta o fordismo das patologias psíquicas na saúde pública brasileira.

Uma entrevista de triagem jogou na cara de Teresa o absurdo desta prática. Uma mulher entre e lhe diz que sua família foi vítima de uma chacina. Que chegou em casa, viu seus filhos mortos no chão, o sangue espalhado por todas as paredes. Teresa parou, impactada. Fez ligações, procurou o lugar que melhor poderia tratar aquele caso tão grave, de uma violência tão brutal. Encaminhou-a. Anos depois, ela conta aos novos estudantes de psicanálise esta história. Ela não conta apenas uma, nem duas vezes; a mulher da chacina é uma constante em seu discurso, uma marca permanente da angústia. Por que eu fui incapaz de ouvir a mulher sobre a chacina? Esta pergunta ecoa na cabeça de Teresa há mais de vinte anos. Ela não foi capaz de lidar com o horror desta experiência, era dor demais para ela carregar, ela teve que passar para frente. Mas a verdade é que não pôde: o preço de encaminhar aquela paciente foi levar para sempre sua memória, a memória de uma pessoa com quem conversou uma vez apenas, e a sombra daquele horror tão brutal que havia vivido.

Décadas de atendimento na saúde pública trouxeram a Teresa muitas histórias de dores e sofrimentos. De pessoas que chegavam tão "estropiadas" no hospital, no CAPS, que ela não sabia nem por onde começar. E ela nos falou sobre como os terapeutas levam os resquícios de seus pacientes, de seus sofrimentos, de cada caso que veem. E sobre como ela escreveu sua tese como uma forma de exorcizar estes resquícios, uma sublimação de tanto sofrimento que se acumulava sobre seus ombros. Eu também escrevo para exorcizar meus resíduos. Mas Teresa sabe que isto não é suficiente; e ela fala, a cada vez que fala em público, ela relembra a mulher que lhe contou sobre a família morta na chacina. Um resíduo que ela carrega para sempre.

Isso me fez pensar muito sobre as minhas escolhas. Sobre os resíduos, sobre o sofrimento humano que carregamos nos ombros. O discurso de Teresa falava sobre as instituições, sobre os confinamentos, mas ele passava ao largo da causa estrutural de todos estes males - o mal fundamental que leva a que todas estas estruturas sociais operem assim; o capitalismo. Minha escolha de vida foi por enfrentar o sofrimento humano combatendo aquilo que hoje é sua maior fonte. E por isto decidi ser um revolucionário, para ir à raiz dos sofrimentos deste mundo.

Mas aconteceu disso não me ser suficiente. E fiquei pensando sobre os resíduos que carrego comigo, os resíduos que nunca conseguimos exorcizar. Quando ela falava sobre as instituições e seu funcionamento, eu me lembrava de quando fui a uma. Não era um CAPS, era uma clínica particular, onde fui visitar uma pessoa que amava, e que subitamente descobri internada. As regras, no entanto, não eram menos rígidas por se tratar de uma instituição privada. Não se entrava de celular, não se entrava com livros antes que fossem aprovados para leitura. Os horários de visita, de ligações, de refeições eram estritos. Nenhum tipo de envolvimento amoroso entre pacientes. Nenhum objeto perigoso nos quartos. Tudo sob controle. O controle dá segurança aos pacientes, e é parte do que muitos deles buscam na instituição. As memórias desta instituição me pesam sobre os ombros, um resíduo que não consigo apagar. A musiquinha que tocava ao telefone, que tocou quando liguei lá pela primeira vez, sem saber que ligava para uma clínica psiquiátrica onde minha namorada, cujo paradeiro eu não sabia há um mês, estava internada. Os almoços que passei lá, os rostos dos pacientes, os detalhes daqueles dias em que ia visitá-la.

A vida nos impõe seus caminhos. A decisão que tomei de lutar por um mundo onde se possam superar os sofrimentos não fez com que eles se atenuassem na luta de cada dia. E eu vi o sofrimento, inadiável, iniludível, carregar a Camila para a morte, sem que pudéssemos fazer o suficiente para mantê-la aqui. Sua escolha de vida era a mesma que a minha, era uma revolucionária. Os sofrimentos lhe tocavam profundamente; ela os entendia, porque ela também sofria. Um psicanalista de um livro que li disse que uma das coisas importantes para ser um terapeuta é ter sofrido. Eu acho pertinente esta observação. Cami sempre foi sensível ao sofrimento alheio, e quando ela estava internada eu a vi feliz. Ela sentiu-se em casa, tornou-se amiga de outros pacientes, sentiu em sua vida o sentido de tocar o sofrimento dos outros. Isto, a luta para penetrar o sofrimento psíquico de cada um, somava-se dialeticamente à luta pelo projeto coletivo de acabar com o sofrimento da humanidade. Mas este projeto não se concluiu, sua vida foi breve demais para isto.

Eu levo os resíduos de seu sofrimento comigo. Teresa sempre se perguntará porque teve de encaminhar a mulher cuja família morreu numa chacina. Eu sempre carregarei comigo muitas perguntas e muitas dores da morte da Cami, em quem penso a cada dia de minha vida. A dor que carrego me aproxima do sofrimento humano, me impele, me faz querer ser parte de encarar a dificuldade de socorrer aqueles a quem a institucionalidade capitalista não dará atenção, e sempre confinará - seja nos muros de seus hospitais psiquiátricos, seja para fora de seus CAPS, ou em qualquer outro tipo de marginalidade. Quero ser uma pequena parte da luta por instituições novas, em que a dura e árdua luta de cada dia não nos torne cegos, incapazes de ter tempo e espaço para a dor do próximo. Para que possamos, no decorrer de nossa luta, nos tornarmos mais humanos, mais capazes de solidarizar-nos com a dor alheia, mais capazes de suportar em nossos ombros os resíduos que, enfim, serão também mais uma motivação para lutarmos por um mundo onde se sofra menos.

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