sábado, fevereiro 15, 2014

O assassinato de Santiago e as saudades do Estado Novo

Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade.
- Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista.

Santiago Andrade: a única morte de um trabalhador que comoveu toda a burguesia do país
Não se fala em outro assunto no país. Não há nada mais importante, mais comovente, mais mobilizador para este Brasil do que um cinegrafista que morreu, vitimado por um rojão. O Jornal Nacional se "comove", a Dilma se "comove". Por que é uma morte que "comove" tanto, se neste país a vida - especificamente a de trabalhadores como Santiago Andrade - é um artigo tão barato? Se somos campeões em mortes por acidente de trabalho, em mortes pela violência policial, e não há toda esta comoção? Onde estava esta comoção quando morreu Douglas em BH, durante protesto na Copa das Confederações, ao tentar fugir das bombas da PM? Ou quando morreu uma gari em Belém por inalar os gases desta polícia? Ou quando foi "suicidado" Kaique? Quando mataram Amarildo? Quando a bala de borracha da PM cegou o repórter Sérgio Silva, e pouco depois o jovem Vitor? Quando morreu atropelado um camelô, no mesmo protesto em que Santiago foi atingido, ao ser atropelado quando fugia das bombas da PM? Quando morrem operários na construção dos estádios da copa? Quando foi baleado Fabrício no ato contra a copa em São Paulo? Quando "justiceiros" amarraram e torturaram um jovem negro a um poste no Rio? Tantas mortes, tanta injustiça, e tão pouca comoção na imprensa e nos governos! De onde ela vem, bem agora?

Em primeiro lugar, é bom lembrar que este não foi o primeiro assunto que tomou unanimemente os meios de comunicação neste ano. Primeiro foram os rolezinhos, que deixaram a burguesia de cabelo em pé, chegando a pautar uma reunião ministerial extraordinária do governo de Dilma. A pauta do governo, então, era "entender" o que queriam os jovens, enquanto a parte mais reacionária da burguesia pedia sangue, através, por exemplo, de sua mais nova testa-de-ferro, a porta-voz da escandalizada "burguesia socialite", a """""jornalista""""" Rachel Sheherazade. O "entender" do governo quer dizer, na realidade, colocar em prática uma das especialidades do PT: cooptar; ganhar os organizadores dos rolezinhos com cargos e dinheiro, e receber em troca todos os votos que estes podem angariar. E mandaram lá o primeiro escalão do governismo em matéria de cooptação e formação de burocratas juvenis - no caso, o PCdoB, partido que dirige o braço do governo petista no movimento estudantil, a UJS, que implementa sua política através da UNE, financiada com alguns bons milhões de dinheiro do Estado. Só que desta vez o tiro saiu pela culatra... Cooptação ou repressão, são apenas duas formas distintas da burguesia tentar segurar o rojão. A atenção que foi dispensada aos rolezinhos era o prenuncio do pavor da burguesia diante de uma inelutável verdade: este país já não é o mesmo depois do ano passado, e está um bocado mais difícil para os de cima seguirem governando, explorando e oprimindo como antes. Era preciso fazer algo.

Globo dedica um editorial do Jornal Nacional à sua "comoção" pela morte de Santiago

A burguesia tem seus métodos. Cada fração dela tenta agir de uma forma - cooptar, reprimir etc. - para atingir seus fins. E, inclusive, eles se estapeiam pelo poder, como vemos com PT e PSDB, por exemplo. Mas, por instinto de classe, quando o deles está na reta, eles podem se juntar em torno de alguma tática em comum contra seu maior inimigo - os trabalhadores e os explorados. E a morte do cinegrafista da Bandeirantes foi um prato cheio para que uma classe que tem medo do futuro pudesse tentar erguer algumas barricadas ideológicas que protejam sua velha e carcomida dominação. A barricada ideológica consiste em tentar convencer os oprimidos e explorados de que a violência que os ameaça é a dos outros oprimidos e explorados, e não a deles, opressores e exploradores. De que a violência que os ameaça não é o desemprego, os baixos salários, a falta de condições de atendimento nos hospitais, a precariedade das escolas, os ônibus caros e lotados, o metrô-lata-de-sardinha que quebra a cada dia mais, a polícia que mata todo dia na quebrada. A violência que os ameaça é um cara com um rojão, que matou um cinegrafista e pode matar qualquer um. E, veja só, este cara com um rojão não é só um: são milhares! Eles saem às ruas, putos da vida porque enfrentam todos os dias a mesma merda que você passa - transporte lotado, trabalho duro o dia inteiro pra enriquecer o patrão, exploração até arrancar o couro, racismo, machismo, homofobia e uma vida dura - e saem com rojões assassinos que podem acertar qualquer um, inclusive... você! E não para por aí: eles não são amadores - estes assassinos com rojões são recrutados por partidos organizados que os aliciam com 150 reais para que eles saiam matando aleatoriamente. Veja bem, tome cuidado: da próxima vez que você estiver puto com o ônibus caro e lotado, lembre-se que você poderia estar sendo assassinado por um manifestante com um rojão! Melhor agradecer!

E, pra sua sorte, nossos governantes já têm todas as providências prontas para serem tomadas: mais polícia, mais armas, mais leis que qualifiquem as pessoas que saem nas ruas dizendo que o ônibus é uma merda como o que eles realmente são - terroristas! É, isso mesmo: o blogueiro Paulo Henrique Amorim bem que já vinha dizendo que os black blocs eram terroristas. A FIFA e a Dilma bem que já tinham aprovado aquela leizinha esperta para a Copa que garantia que não só estes terroristas, mas também os terroristas trabalhadores que fizessem greve recebessem a sua lição. Agora, é só aprovar mais esta nova lei e o povo trabalhador não vai mais ter o que temer: os vagabundos de rojão vão todos pra cadeia; os que reclamarem de qualquer coisa vão todos para a cadeia. E você, bem, você já pode voltar pra sua vida tranquila e segura: um salário que não chega até o fim do mês, um emprego que você não sabe até quando vai ter, um busão caro onde você vai e volta esmagado por três horas, uma polícia que pode te matar ou te descer o cacete porque você é preto e pobre. Ufa! Não tem mais nada a temer!

Então, vamos lá, repetir algumas coisas que já estão aí sendo ditas por muita gente, mas infelizmente é muita gente que não tem nem a Rede Globo, nem a Folha de São Paulo pra dizer estas coisas, então é bem possível que você ou as pessoas que você conhece ainda não tenham ouvido porque suas vozes não chegam muito longe (como a deste precário blog). Primeiro: você já viu o vídeo do cara que soltou o rojão e comparou bem de pertinho com a foto do cara que foi preso na Bahia? Ok, pode ser que ele tenha se bronzeado bastante, mudado de cabelo, colocado um óculos, sei lá... as pessoas mudam, né? Tá, então vamos para outra coisa: você sabe quem é o advogado que está defendendo eles? É um cara que defende pessoas ligadas às milícias no Rio de Janeiro. Sim, as mílicias, sabe, aqueles grupos formados por policiais que dominam territórios na cidade onde controlam o tráfico, cobram "proteção" das pessoas, regem bairros e favelas inteiras com métodos do fascismo. Bom, e como este cara que defende grupos de extrema direita formados por policiais foi defender manifestantes que estavam em um ato de esquerda? Pelo "amor ao trabalho", diz ele. Que bonito, né? Outra coisa: o primeiro cara preso, que entregou seu colega a quem deu o rojão, tem o mesmo advogado do outro. Você não acha esquisito? Um cara é preso, seu advogado diz pra ele assim: "entrega seu amigo que eles aliviam pra você". Tá, o cara vai lá e entrega. O outro é preso e fala "bom, aquele advogado que falou pro meu amigo me entregar pra polícia parece um cara gente fina. Acho que vou querer que ele me defenda também." Em seguida, vem um monte de declarações bombásticas, uma mais ridícula que a outra: que eles são envolvidos com o deputado Marcelo Freixo do PSOL. Olha, eu não tenho lá muita afinidade política com o Freixo, mas posso te dizer que ele é bem conhecido por... combater as milícias no Rio! Coincidência, né? Depois dizem que os manifestantes recebem 150 reais para "quebrar tudo". Isso já ultrapassa o limite do ridículo. Qual o sentido de pagar alguém para ir a um ato quebrar tudo? O que um partido ganha com isso? Acusam os partidos legalizados que participam das manifestações, PSOL e PSTU, de "comprar" manifestantes. A troco de quê? Quem comprou? Será, pense você, que o advogado dos milicianos - cujo principal adversário político neste momento é o Freixo - não poderia, por acaso, orientar seus "clientes" a dizer que eles foram aliciados para que a pena sobre eles fosse mais branda? Eu vou a manifestações há pelo menos dez anos, eu conheço muito bem PSOL e PSTU porque eles são meus principais adversários políticos todos os dias na universidade e fora dela há um bom tempo. Eu sei muito bem os podres que são capazes de fazer. E, acredite, não só eles não pagariam a ninguém pra ir na manifestação, como se o fizessem não faria sentido algum. Será que é tão difícil acreditar que as pessoas saem às ruas porque elas acreditam em algo? Por que querem mudar este mundo de merda?

Mas esta historinha da carochinha, bem mal contadinha mas mesmo assim reproduzida como verdade em cada jornal e canal de televisão deste país - devidamente acompanhada por um montão de lágrimas de crocodilo pela morte de um trabalhador que não ganhou sequer o mínimo de segurança para trabalhar por parte de seus patrões - me lembrou de uma outra historinha parecida, de tão mal contada, e com uma solução já prontinha também. Foi em 1937. Nosso querido presidente da república, o "pai dos pobres", Getúlio Vargas "descobriu" um plano dos comunistas para... dominar o país! Veja só, este plano da Internacional Comunista (sic!) previa incendiar prédios públicos (será que eles usariam rojões?), saques, destruição, sequestro de governantes e figuras importantes, enfim, transformar o país num caos! Era o Plano Cohen, vindo de Moscou para aterrorizar a população de bem. Mas, ainda bem, o "pai dos pobres" tinha a solução para isso: uma leve ditadurazinha, com suspensão dos direitos civis, das eleições, uma constituição nova feita a gosto do ditador. Houve quem não gostasse, claro, sempre há os que querem baderna. Mas os integralistas, por exemplo, foram imediatamente fazer uma manifestação para apoiar o Vargas. Felizmente, triunfou a ordem, e a ditadura do Estado Novo de Vargas foi até 1945, tranquilamente prendendo, torturando e assassinando comunistas, operários, enfim, todos aqueles que não concordassem que o país ia muito bem, como, aliás, vai até hoje. Em 1945 o general Goes Monteiro revelou publicamente que o plano Cohen era uma farsa, (Uau! Quem diria!!!) montada pelo governo para justificar sua ditadura.

E, ainda bem, hoje também podemos contar com a eficácia da polícia civil, que concluiu a investigação em tempo recorde. Podemos contar com a confissão destes marginais - devidamente assessorados por seu advogado defensor de milicianos e amante de seu trabalho - que acabaram nos revelando que por trás de toda esta baderna estão os terríveis comunistas (nossa, mas eles não cansam?). E ainda bem que, como nos anos 30, a solução já está pronta, na forma de uma maravilhosa lei contra o terrorismo. Tudo o que cabe a nós, cidadãos de bem, é apoiar nossos governantes neste decidido combate aos maus elementos da nação! Tudo pelo progresso e contra os vândalos!


Nenhum comentário: