quarta-feira, setembro 22, 2010

Teatro de sombras

E mais uma vez, porque nunca será demais, volto à minha camarada Alexandra Kolontai:

"A idéia da propriedade se estende muito além do matrimônio legal. É um fator inevitável que penetra até na união amorosa mais livre. Os amantes de nossa época, apesar de seu respeito teórico pela liberdade, só se satisfazem com a consciência da fidelidade psicológica da pessoa amada. Com o fim de afugentar o fantasma ameaçador da solidão, penetramos, violentamente, na alma do ser amado, com uma crueldade e uma falta de delicadeza que será incompreensível à humanidade futura. Da mesma forma pretendemos fazer valer nossos direitos sobre o seu eu espiritual mais íntimo. O amante contemporâneo está disposto a perdoar mais facilmente ao ser querido uma infidelidade física do que uma infidelidade moral e pretende que lhe pertença cada partícula da alma da pessoa amada, que se estenda mais além dos limites da sua união livre. Considera tudo isto como um desperdício, como um roubo imperdoável de tesouros que lhe pertenciam, exclusivamente e, portanto, como um saque cometido à sua revelia."

Sim, chegamos a vender tão barato o respeito e o carinho a quem amamos e a nós mesmos para fugir ao ameaçador fantasma da solidão. E, assim, sem perceber, viciamos, apodrecemos, contaminamos nossas ligações psicológicas e afetivas mais profundas com o sufoco do dia-a-dia, com a podridão que vai tomando conta do nosso espírito. Transformamos o amor em tédio, a companhia em prisão, o companheirismo em mordaça, a afeição em desespero. Transformamos um fantasma, inventado pela alienação, exploração e opressão, no carrasco maior que executa com requintes de crueldade uma das últimas e maiores vítimas desta sociedade encarquilhada e fétida. Nos fazemos cúmplices deste crime imperdoável. Somos nós os portadores hipócritas de uma moral arcaica e ressentida, que teme um sopro de ar fresco e um facho de luz que a varra de uma vez por todas da humanidade.

Vício, vício, vício. Procuramos nossos ópios, rastejando às cegas por esta masmorra em que estamos presos. Socando suas paredes, queremos um narcótico qualquer, uma ilusão que nos vendam barato à primeira esquina, para aplacar a dor lancinante de enxergarmos nossa liberdade tão longe e a custa de tanto esforço e esperança. Queremos fazer de nossas fraquezas uma força para combater. Não vemos o quanto somos cegos ao tentar vencer o jogo sem mudar, sem impor nossas regras. Não vemos que virar este jogo significa construir nossos exércitos e empunhar nossas armas, mas também extirpar o chorume viscoso que impregna nossos pensamentos e sentimentos. Lutar a cada dia para saber que não podemos ser o futuro, mas que precisamos ensiná-lo a ser, a nunca mais ser uma repetição eterna de um passado que insiste em não morrer. Que não podemos nos fazer só de passado, só de temor e ódio dos fantasmas.

Não há amor revolucionário sem atitudes revolucionárias.
Se a matéria prima do desejo humano é a ausência, saibamos que nosso desejo ávido por um futuro que enterre esta sociedade tem que ser nosso guia para a ação. Mas que nossas ações não se guiem só pelo desejo; que as saibamos conduzir, aprendendo com o passado. Que nosso desejo ávido por amor não nos torne pálidas figuras amedrontadas pela solidão, mas sim aqueles que lutam por emancipar o amor de seus grilhões enferrujados. Se nossa mente sofre hoje com esta crosta cinza e espessa que a recobre, que se espalha por nossas vidas e, como um óleo desliza sem se desmanchar, saibamos que os que mais sofrem com o velho são os que mais lutarão pelo novo. Não sejamos mais vítimas de nossos vícios, nossos ópios e desesperos. Coloquemos nossas mentes e corações a traçar planos e a se apaixonar por esta luta pelo novo. Somente se estivermos em movimento constante, sem nos deixar prostrar pelos fantasmas que nos assombram, poderemos aprender a construir esta difícil ponte entre o hoje e o porvir. E veremos assim que nossos fantasmas não passam de um orquestrado teatro de sombras, de ideologias de um museu travestido de vida, cujo objetivo é justamente nos paralisar.

Um comentário:

ciola disse...

fernando, existem coisas que pertencem ao campo do inconsciente, não basta 'decidir'pra mudar as opiniões do seu coração, embora este seja um passo importante. enfim, aí acho que também não tem como resolver: "não vou sofrer", mas acho que dá pra se posicionar com essa postura crítica em relação aos sentimentos, sabendo que se vai sofrer e encarar o bicho de frente. isto é, o corajoso não é o que não tem medo, é o que está disposto a enfrentar a batalha apesar do medo que como todos os outros vai sentir.