segunda-feira, setembro 20, 2010

Sobre páginas em branco

Lembro-me das páginas em branco. Elas sempre me foram assustadoras mas, também, irresistíveis. Assustadoras como tudo aquilo que se apresenta como um infinito de possibilidades, como um mundo inteiro em potencial, colocado nas suas mãos e sob sua responsabilidade: só cabe a você dizer o que será daquilo.
Na escola, quando era pequeno, às vezes as páginas em branco se postavam à minha frente. Para a professora, uma atividade corriqueira: redação livre. Para os colegas, em sua maioria, mais uma chata tarefa escolar da qual se desembaraçavam com o mínimo de esforço possível, alguns raros até com algum prazer. Para mim, sempre, um misto de grande euforia e angústia; a página, ou até as páginas, em branco, todas só para mim, para que eu escrevesse nelas tudo aquilo que eu quisesse. Não havia para mim notas, colegas, professora. Apenas eu e a página, e a responsabilidade de colocar nela algo que estivesse a altura de preencher aquele espaço em branco. No final havia, sim, uma satisfação de ter preenchido o espaço. Mas também a sensação sempre presente de que eu poderia ter feito outra coisa, uma coisa muito mais interessante.
Na vida, seja na escola ou em qualquer lugar, este mundo nos fornece cada vez menos páginas em branco. Na verdade, nas engrenagens em que somos forçados a nos espremer, somos nós mesmos uma palavra ou pequena frase, tentando nos adequar para preencher uma lacuna obscura e alheia a nossa vontade, na qual nunca nos encaixamos de verdade. Perdemos as páginas, perdemos as canetas, perdemos a perspectiva de ler, escrever, criar, discutir, sonhar. Esta liberdade, das páginas para fazer o que se queira, estão reservadas apenas às crianças. Apenas a algumas poucas crianças. A liberdade que nos é dada a vislumbrar porque não há compromissos, responsabilidades, prazos, lacunas curtas onde temos que nos espremer. Há tempo, há brincadeiras, há espaço.
Um dia eu percebi, finalmente: não existem as páginas em branco. E isto é absolutamente incrível. As páginas em branco são uma conversa fiada que nos empurraram cabeça adentro, uma historinha nos faz achar que existem gênios criadores arrebatados por momentos sublimes de inspiração. Que existe ou pode existir em alguma alma excepcionalmente sensível uma melancolia ou uma alegria indeléveis, um arroubo de solidão, uma fagulha insubstituível de criatividade, um dom místico, metafísico, imaterial, esplêndido, intocável. Que há um espaço dentro de nós mesmos, ou fora, por aí, a procura de almas, onde podemos encontrar coisas secretas. Que este momento raro é a essência mesma da vida.
Quanta bobagem me haviam vendido em uma só página em branco! A página em branco da minha cabeça, onde as palavras hediondas e espelhadas em um reverso tão idêntico a si mesmas haviam sido escritas. As palavras que me deram: era com elas que eu preenchia as páginas em branco da minha infância, nas redações escolares. As palavras que me deram, que já estavam me dando e preparando e consagradas muito antes que eu nascesse, foi com estas palavras gastas que eu preenchi todos os meus relacionamentos, sonhos, perspectivas e esperanças. As palavras que querem nos fazer acreditar que são nossas, com elas preenchemos nossas páginas em branco, que se ajuntam em um imenso livro velho e empoeirado que se escreve por cima das nossas cabeças.
Há aqueles que acreditam, ingenuamente, poder formar suas próprias palavras, ter páginas em branco só suas para escrever. Se inventássemos nossas próprias palavras, quem nos entenderia? Não se trata disto, de acharmos que o que precisamos são páginas em branco preenchidas de palavras que nunca foram ditas. Há sim que criar e dizer e escrever palavras que nunca foram ditas, para que possamos de uma vez por todas mudar a mesma velha história que se escreve a cada dia. Mas não há quem possa criar sozinho suas palavras, assim como não há palavras novas que não se criem das velhas.
Temos que tomar o discurso das nossas vidas em nossas mãos; procurar no velho livro as palavras que querem nos ocultar, palavras desafiadoras que possam nos servir para mudarmos o discurso e, com tempo, esforço e, principalmente, construindo discursos coletivos, poderemos criar novas palavras, novos discursos, que se somem e possam criar, enfim, uma nova história sobre as páginas em branco que se postam a nossa frente.

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