terça-feira, dezembro 27, 2005

III

Pôncio não sabia, mas o plano de Natal dos moleques havia começado já há muitos meses. E toda a sua felicidade, materializada em quantidades fartas de diversos tipos de drogas se devia a um sujeito que nunca passaria pela cabeça bronca do delegado: era graças ao discreto marceneiro de Bom Jesus do Nazaré que eles conseguiam aquilo tudo. Moleque pobre e paraguaio, não falava português bem o suficiente para que alguém na cidade se preocupasse em tentar entender o que dizia. Pablo Sujes era considerado cidadão de segunda categoria, inapto a participar da vida social da cidade e não recebia convites para aniversários, casamentos, ceias de Natal e ano novo. Sua única função era construir e reformar móveis, portas, cadeiras e outras quinquilharias. De resto, a cidade não lhe notava a existência. Atrás de seu portunhol tosco, seu bigodinho mal aparado e suas camisas xadrez velhas e maltrapilhas, se escondia um moleque ressentido daquela caipirada estúpida.
A família Sujes chegara na cidade antes de seu nascimento, apenas sua mãe e o marido, fugindo sabe-se lá do que para ter que parar num fim de mundo como Nazaré. Já velha e doente, a mãe recebeu a gravidez de seu único filho como uma surpresa desagradável, já que o marido havia sido diagnosticado por uma infinidade de médicos como estéril. A ferida no orgulho de José Sujes de não poder passar seu sangue adiante se agravou dolorosamente ao se deparar com a inevitável constatação de que fora traído pela mulher que, não importando o quanto jurasse não ter sido infiel, não conseguira convencer disso o marido. Durante a gravidez Maria Sujes passou por maus bocados na mão do marido inconformado, que lhe batia e insultava. Após as surras que recebeu, a continuidade da gravidez era um verdadeiro milagre. Afora os vizinhos consternados com o barulho, ninguém se importou com as contínuas brigas na casa deles. Por fim, no dia do nascimento do filho bastardo, o desgosto de José Sujes foi demais: deixou a mulher no hospital para parir o rebento e não ficou para assistir. A mulher passou a noite de Natal na maternidade, perguntando desesperadamente em um incompreensível espanhol dirigido a uma apática enfermeira de plantão onde se encontrava seu marido, até que lhe aplicaram um sedativo que a fez dormir até o fim da noite. O paradeiro de seu marido só lhe foi revelado quando chegou em casa com o pequeno Pablo e viu José enforcado numa viga da casa.
Pablo teve que trabalhar desde os dez anos ajudando na marcenaria do Seu Sebastião para poder sustentar a mãe enferma, que já então mal conseguia andar e muito menos trabalhar. Foi assim que herdou o ofício e a oficina do patrão sem família, que morreu quando Pablo tinha dezenove anos. Não terminou a escola, não tinha amigos e, além do trabalho, sua única ocupação era cuidar da mãe. Bebia uma cerveja solitária no domingo, pensando em coisas que não existiam. Mas um dia as coisas mudaram.

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