segunda-feira, dezembro 26, 2005

II


O delegado Alexandre Pôncio revirava sem sucesso as redondezas da praça principal atrás dos fugitivos. Era o último de uma longa linhagem de mantenedores da lei na cidade, com mão de ferro. Mas não era segredo para ninguém na cidade que, há anos, desde o nascimento de seu primogênito, a família Pôncio não era mais digna de sua dinastia de xerifes em Nazaré do Bom Jesus. Juninho nascera retardado, pra desgraça do pai, que ficara sem saber como iria arranjar herdeiro a Lei da cidade. Só não jogou o moleque num rio ou deixou no orfanato por causa dos mexericos. A cidade inteira sempre sabia de tudo, e não teria como explicar o término da gravidez da mulher sem uma criança no colo depois. Seria o fim do prestígio da família Pôncio. Então Alexandre seguia, com desgosto, na carreira de justiceiro de Nazaré. O último.
Mas, intimamente, Alexandre conhecia o problema real de sua família: o sangue enfraquecera. Ele próprio, Alexandre Pôncio, sabia não ser digno do título de Varão da família, herdeiro da Lei de Nazaré do Bom Jesus. Lembrava-se, envergonhado e em segredo, das coças que recebia do pai na infância enquanto ouvia os desabafos do velho pai-xerife: Fraco, covarde, inútil. Apanhava na escola e depois em casa, por não ter sabido revidar. Primeiro teve que aprendeu a não chorar e, em seguida, a bater nos meninos da escola também: primeiro nos menores, depois nos grandes. Batia por vingança, pra revigorar a alma das surras aplicadas pelo pai. As punições físicas não lhe doíam tanto, o que ressentia Alexandre era sua moral ferida de menino que queria ser homem. A humilhação de casa ele aprendeu a colocar no punho que acertava os moleques da escola. Irrascível, certa vez, aos quinze anos, exagerara numa demonstração de força para tentar provar a si mesmo que era digno de ser um Pôncio. A vítima foi para o hospital, dali pra frente não se sabe. Fosse qualquer outra criança, Alexandre teria enfrentado problemas sérios. Mas era um Pôncio, e o caso foi logo esquecido por todos. De qualquer forma, a surra foi incapaz de purificar Alexandre da certeza que o pai lhe dera: era um fraco, fruto dos novos tempos em que os casamentos dos Pôncio deixaram de ser consangüíneos. O sangue puro se diluíra na frouxidão das outras famílias. E Alexandre carregou isto ao longo da vida, destilando lentamente como um veneno que o corroia por dentro. A confirmação final veio no maldito dia em que trouxera ao mundo aquela aberração, incapaz de levar adiante a tradição da família. Seu único contentamento era o pai não estar lá para presenciar esta degradação final. Mas tudo isto Pôncio carregava dentro de si. Por fora se mantivera impassível, rígido: era o incontestável homem forte da cidade.
Outrora teria dado um corretivo de dar gosto nestes moleques, arruaceiros de merda, ao invés deste chá de cadeira fajuto que se aplicava na delegacia. Nas estradas ao redor de Nazaré, a lei dos livros não tinha vez: lá quem era Rei e dava a palavra da justiça era a família Pôncio. Mas, além do desamparo de ser um Rei sem herdeiro, a nova geração de arruaceiros trazia outros problemas pro delegado: uma das principais figuras no bando era Maria, filha única da outra família notória da cidade, e o pai da menina era o prefeito. Por isso a coisa apertava bem onde o delegado tinha menos tato, que era a diplomacia. Por mais que fosse um Pôncio, não podia chegar ao extremo de mandar prender ou dar uma surra em Maria Pilatos. Pelo menos, consolava-se Alexandre, minha família não chegou a ponto de criar uma vagabunda drogada. Se pudesse, arrancava ele mesmo os dentes da pequena meretriz. Era principalmente por causa dos seus privilégios que ela conseguia sempre tirar os outros da cadeia, depois de passarem uma noitada na cela. E, Pôncio tinha certeza, era ela também que facilitava a entrada na cidade das drogas que eles usavam. Era o resultado desta merda de criação de frouxo que deram às crianças. Sem trabalho, só saindo de casa pra vadiar. Deu nisso.
Alexandre continuava rodeando o centro da cidade, aliviado pela oportunidade de sair de casa. O Natal era para ele o pior dia do ano, pois foi justamente nele que se deu a desgraça de nascer o filho. Todo ano a mulher, a filha mais nova e o resto da família comemoravam o aniversário de Juninho, enquanto o pai se remoia de tristeza num canto, engolindo a amargura num prato de peru e farofa. O filho da puta do médico, nunca confiara nesta raça, dissera que o menino não passaria dos quinze anos. Este ano completava vinte e três, e andava muito bem de saúde. Pelo menos a arruaça na cidade lhe deu uma desculpa pra sair, e também alguma coisa em que descontar a raiva. Deu uma boa surra nos dois primeiros antes de os mandar pra delegacia. Mas ainda faltavam muitos, com certeza todos tinham saído pra aproveitar as ruas desertas da noite de Natal.

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