domingo, dezembro 25, 2005

Ainda iriam passar cerca de quatro horas naquele buraco sujo, segundo os cálculos imprecisos de Pedro. Mas para sua cabeça, naquele estado, quarenta minutos ou quatro horas seriam difíceis de distinguir. Alternava o foco da sua atenção entre os diversos pontos de dor no seu corpo, ora sentindo seu pé latejando, provavelmente com algum osso quebrado, ora sentindo as feridas no rosto, cujo sangramento não estancado tingia de vermelho sua camiseta velha e o chão da cela. Felizmente, os gritos e insultos do Ferreira se tornavam um zumbido distante e sem importância na sua consciência anuviada pelas drogas.
Sentado no chão a sua frente, Paulo olhava fixamente um fiapo de peru que, pendurado de maneira insólita, se remexia insistentemente no bigodinho do Ferreira a cada grunhido do discurso disciplinar que ele emitia. Na visão do guarda, o deslumbramento lisérgico do adolescente com o resto de comida no seu bigode era um olhar assombrado pelo temor que sua figura de autoridade transmitia. De pé, perscrutando os adolescentes com seu rosto arduamente treinado pelos procedimentos da corporação policial, Ferreira sentia a plenitude do dever cumprido: a vigilância da ordem da cidade estava sendo executada à risca. E a harmonia sagrada do Natal, agora que estes arruaceiros estavam atrás das grades, estava mais uma vez assegurada. Para enfatizar o apelo disciplinar de sua fala, por vezes o guarda batia subitamente com seu cassetete nas grades de metal da cela, provocando um barulho desagradável que ecoava pelos corredores da pequena delegacia de Nazaré do Bom Jesus. A moral do policial permanecia inabalável, a despeito do fato de que ninguém na cela estava ouvindo ou se importando com seus impetuosos brados.
O guarda Ferreira, agora já passado da idade de receber uma promoção do delegado, tinha como única ocupação correr atrás deste bando de moleques. Era a quinta vez neste ano que eram presos por vadiagem. Eram, na verdade, a última salvação do pobre guarda: não podia agüentar o burburinho das conversas de praça e das comadres da Igreja dizendo como era um inútil, que polícia em Nazaré era que nem bombeiro no pólo Norte, que sua profissão era vigiar os casais namorando na rua. Ferreira sabia que o destino lhe guardava mais: era um bastião da justiça, defensor incansável da lei. Recebera treinamento, sabia atirar, algemar, conhecia os procedimentos. Das suas histórias, todas inventadas, se gabava portentosamente nas festas, quando todos estavam bêbados. Ele, nunca bebendo, dizia que era dever de um oficial permanecer em plena capacidade de exercer sua função, ainda que fora de serviço. Era necessário se manter austero para intervir em quaisquer complicações. E saíra orgulhosamente da ceia de Natal, como se atendesse uma emergência, quando precisou resolver o caso dos moleques. Pois sim, pensava ele a caminho do dever, agora esta cidade vai ver como é fundamental um policial preparado para a ação em plena noite de Natal. Ou prefeririam ver a Noite mais sagrada do ano arruinada por uma dúzia de arruaceiros? E agora vigiava a cela enquanto o delegado ia atrás dos outros.
Seu discurso corretivo versava acerca dos valores que os jovens haviam desrespeitado, da decepção e vergonha que causavam às suas famílias e à reputação da cidade, entre outros ensinamentos morais que certamente, segundo Ferreira, dariam a estes delinqüentes algo em que pensar enquanto alguém não os vinha retirar. Vadiagem é errado! Bradava Ferreira a plenos pulmões. Bebedeira é errado! As faces murchas do guarda adquiriam tons avermelhados. Desrespeitar a autoridade é errado! Os olhos injetados saltavam das órbitas. Vocês são vagabundos! Arruaceiros! Delinqüentes! Imbecis! Paulo finalmente alterou sua expressão catatônica e boquiaberta quando, ao proferir os últimos brados acertando escandalosamente seu cassetete contra as grades, Ferreira varreu de seu bigode o pedacinho de peru, carregado por uma torrente de frenéticos perdigotos. O menino olhou pra baixo, encarando no chão a sua frente a pequena gota de saliva que jazia junto ao resto mortal do animal servido na ceia de Natal da casa da sogra do guarda Ferreira. O guarda, vendo Paulo olhar para baixo, se deu por satisfeito concluindo que o menino baixava a cabeça de vergonha diante de seu sermão. Taquicárdico por sua comoção, o policial resolveu descansar um pouco em sua mesa. A noite ainda era longa pela frente, e felizmente ele estava longe dos parentes bêbados e de seu escárnio pela sua nobre profissão. Paulo e Pedro aguardavam em silêncio na cela, certos de que seus outros amigos se juntariam e eles em breve.

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