terça-feira, janeiro 21, 2014

Kaique, os suicídios e os suicidados.



Imagine andar na rua com medo, todos os dias; medo de ser visto pela pessoa errada, na hora errada, no lugar errado. Imagine ter medo de que sua família descubra quem você é, com quem você namora. Imagine ser espancado, torturado brutalmente, morto, apenas e unicamente porque ousou ser quem você é. Imagine que por séculos consideraram a sua sexualidade, a sua forma de amar, uma doença, e que até hoje é considerado um pecado, e em muitos lugares um crime. Imagine ser considerado esquisito, estranho, uma aberração, uma pária. Ouvir piadas sobre o "tipo" de pessoa que você é em cada canto, em cada esquina, em cada boteco, na sua escola, no trabalho, nos programas de televisão que fazem isto impunemente, porque não há nenhuma lei sequer dizendo que você tem direito de não ser discriminado por quem quer que seja.

Tudo isto, ou pelo menos grande parte destas situações, são coisas que os LGTTBI enfrentam todos os dias, sendo que no caso de alguns deles, como as travestis e transexuais, há ainda outras coisas que poderíamos acrescentar à lista, como ser quase sempre relegado à prostituição como forma de subsistência. A nossa sociedade não apenas é conivente com a violência contra quem tem qualquer tipo de sexualidade ou identidade de gênero distinta dos padrões heteronormativos, mas ela incentiva esta violência. Ela incentiva com suas instituições mais fortes: a Igreja, a televisão, a escola, a família.



Isto porque qualquer diferença na sexualidade (um desvio da normalidade, aos olhos da nossa sociedade) é um ataque ao que há de mais sagrado no lamentável mundo em que vivemos: a propriedade privada. Por quê? Bom, tem um sujeito chamado Engels, que explicou isto muito bem, e recomendo muitíssimo sua leitura. Mas, resumindo a coisa, acontece que a célula fundamental de uma sociedade baseada na propriedade privada é a família, aquela bem de comercial de margarina, com papai-mamãe-filhinhos. Como explica Engels, o surgimento da monogamia, do casamento, enfim, da família tal qual a conhecemos, está intimamente associado à origem da propriedade privada: para que houvesse herança era necessário saber de quem era o filho, e, bem, todos sabem quem é a mãe de alguém, já o pai... só se poderia garantir a certeza da paternidade impondo à mulher que só tivesse um parceiro sexual, e assim o pai poderia se assegurar de que transmitiria a seu filho de sangue a sua propriedade.

Contudo, há ainda outro fator de imensa importância no papel econômico desta: em uma família (ou pelo menos no tal padrão "ideal" de família) o papel do homem é o de "provedor", trabalhando fora e garantindo o sustento, e a mulher é a "senhora do lar", assegurando o cuidado dos filhos, a manutenção da casa, a preparação da comida, enfim, tudo o que se refere ao âmbito doméstico. Acontece que este trabalho "feminino" é fundamental para que todos os dias o homem possa levantar e ir vender a sua força de trabalho para o capitalista que irá explorá-lo. E este capitalista não paga um centavo para que a esposa do trabalhador faça tudo isto, por todo este trabalho que serve para que seus trabalhadores estejam todos os dias novinhos em folha para trabalharem para ele. Assim, este trabalho socialmente necessário é um trabalho não remunerado, que é "naturalizado" como sendo da esposa, da mulher. Com a revolução industrial, as guerras, o movimento feminista etc. a mulher foi progressivamente ganhando espaço no mercado de trabalho. O que mudou para as mulheres? As mulheres da burguesia ou da pequena-burguesia (as tais classes médias) passaram a contratar empregadas, faxineiras, babás - particularmente em países como o Brasil onde a tradição da escravidão nunca saiu da tradição das classes dominantes - para realizar suas tarefas domésticas enquanto elas trabalhavam. Para as mulheres trabalhadoras (como as próprias empregadas domésticas), veio a dupla jornada de trabalho, em que elas continuam sendo relegadas pelo patriarcado e pela sociedade machista a ter que realizar todas as tarefas domésticas, mesmo trabalhando oito ou mais horas fora de casa.



Este modelo de família raramente existe tal qual ele é "pregado" por nossa sociedade; no século XIX Marx já dizia, no segundo capítulo do Manifesto Comunista que esta família "Completamente desenvolvida (...) só existe para a burguesia; mas ela encontra o seu complemento na ausência forçada da família para os proletários e na prostituição pública. Contudo, mesmo sendo um modelo "ideal", é ele que permanece fundamentando a estruturação econômica da sociedade, a divisão sexual do trabalho, a criação dos filhos etc. Qualquer tipo de sexualidade que não seja a heterossexual, qualquer identidade de gênero que não seja cis (identidade de gênero e sexo coincidem), necessariamente coloca perguntas e questionamentos sobre estes modelos socialmente referendados, ainda que se faça um tremendo esforço para que, ao mesmo tempo que se reprime e se combate todo tipo de questionamento da heternormatividade, se procure cooptar os LGTTBI para terem uma aspiração de vida tendo como modelo a família burguesa e heterossexual.



Daí, ser gay neste mundo é ser subversivo, anormal, ser perseguido como um animal raro, por mais que seja algo completamente normal do ponto de vista biológico ou psíquico. Esta é a vida que, dentre tantos em nosso mundo, levava o jovem Kaique, de 16 anos. Diferentemente de jovens homossexuais ricos e brancos, que apesar de enfrentarem muita discriminação, podem relativamente - e apenas relativamente - se distanciar dela em locais onde sua sexualidade é mais aceita, como o Shopping Frei Caneca ou a USP, Kaique era pobre e negro. Ser homossexual na periferia de uma grande cidade como São Paulo é estar sob a mira constante da homofobia, ainda mais do que quando se mora nos Jardins. Pode vir por parte da polícia, do tráfico, pode ser alguém no bar, podem ser skinheads, pode ser o pastor da igreja ali ao lado ou seus próprios parentes. Podem ser insultos, ameaças, censuras, sermões, agressões físicas, abusos sexuais, estupros corretivos ou punitivos, tortura e assassinato. Não há nenhuma instituição que te dê o mínimo de amparo, seja ele legal, físico, moral ou psicológico para enfrentar isto. Na verdade, a maior parte delas faz parte da perseguição que está em todas as partes.

Kaique foi encontrado morto após sair de uma balada sorridente e feliz. Uma região rondada por skinheads, sedentos por descarregar seu ódio cego e estúpido em alguma vítima. Quando seu corpo foi achado, todos seus dentes haviam sido arrancados e uma barra de ferro estava atravessada em sua perna. A polícia, antes de qualquer coisa, disse que foi suicídio. O absurdo desta constatação, motivado evidentemente pela homofobia da própria polícia - amparada legalmente pelo fato de que a homofobia sequer é crime e os poucos casos registrados não são qualificados como crime de ódio, mas como crimes comuns - levou a que a família se pronunciasse publicamente e que se organizasse um ato no dia 17/01 pedindo justiça, pela apuração do assassinato de Kaique e a punição dos responsáveis.



No sábado havia familiares dele no ato; hoje, a família veio a público "reconhecer" que foi suicídio. As supostas "provas" de que foi suicídio são alguns escritos tristes em seu diário, ensaios de carta de despedida. Isto foi suficiente para contrariar todo tipo de lógica, como quando se afirma que ele caiu em pé mas que a queda lhe arrancou todos os dentes (além de enfiar em sua perna uma misteriosa barra, ocultada posteriormente pela polícia). Sabemos como funciona a polícia. A família de Amarildo, para dar apenas um exemplo, foi ameaçada para que não continuasse sua denúncia. Todos os familiares de pessoas mortas pela polícia e que ameacem denunciar são ameaçados, e mesmo quando a denúncia é levada adiante os policiais são julgados em tribunais militares especiais, onde são inocentados sem nenhuma preocupação com qualquer aparência de justiça.

Nada é capaz de me convencer que Kaique não foi brutalmente assassinado, não sem antes ter sido espancado e torturado. Mas, mesmo que fosse verdade que Kaique cometeu suicídio, que ele pulou de um viaduto para acabar com sua própria vida, ele teria sido assassinado. Viver com medo, perseguido, condenado, ameaçado e discriminado não é uma vida digna para nenhum ser humano. Inúmeras pesquisas feitas em distintos países ao redor do mundo, como esta na Holanda, atestam o número muito maior de suicídios na população LGBTTI do que em outras camadas. São pessoas que tiram a vida com suas próprias mãos, mas que foram assassinadas por uma sociedade doente, preconceituosa, que é incapaz de permitir que as pessoas tenham direito sobre seu próprio corpo e sua própria sexualidade. Tenha sido Kaique assassinado pelas mãos de skinheads ou mesmo na improvável hipótese de que ele lentamente tenha sido envenenado com a peste homofóbica de nossa sociedade, Kaique foi uma vítima de uma ideologia e uma sociedade que precisam - estas sim - morrer o quanto antes. Não descansaremos enquanto não for feita justiça e enquanto cada ser humano não possa expressar sua identidade de gênero e sua sexualidade como quiser, sendo respeitado por todas as pessoas e amparado de todas as formas pela sociedade.

Nenhum comentário: