quinta-feira, agosto 29, 2013

Medicina, racismo e elitismo no Brasil: uma combinação de classe feita para matar



Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõem a partir da aparência... coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo.

- Michele Borges, jornalista em seu Facebook.

Eu estive lá, eu vi de perto quem são e como se formam as pessoas que se juntaram por um instinto de auto-defesa corporativa para chamar os médicos cubanos de “escravos”. Passei mais de um ano estudando medicina com estas pessoas, e posso afirmar que foi uma experiência que marcou minha vida. Me ensinou muito concretamente algo que eu viria a aprender teoricamente apenas alguns anos depois: que a sociedade em que vivemos é dividida em classes, com interesses antagônicos e irreconciliáveis.

Quando estive em uma faculdade privada de medicina, a Unisa, nos anos de 2003 e 2004 eu não era comunista. Estava muito longe disso. Era petista, acreditava que a única possibilidade que restava à humanidade era fazer do capitalismo o menos pior que ele pudesse ser. A verdade é que eu pensava assim porque havia crescido e passado toda a minha adolescência na bolha da pequena-burguesia, e isto me impedia de ver o mundo tal como ele é; contudo, todo tipo de alienação e limitação em minha visão política que eu pudesse ter por conta de minha condição de classe era algo que se relativizou muito quando entrei na medicina: para os parâmetros de lá, eu era um subversivo total. Eu não sabia disto até o primeiro dia de aula...

Meu primeiro “ato subversivo” na faculdade foi ter cabelo comprido. Segundo fui informado aos berros por um estudante do sexto ano, que insistia também que eu “não tinha direito” de olhar para seu rosto enquanto ele falava comigo porque eu era um “bixo”, o fato de eu ter cabelo comprido não apenas não era uma “postura adequada” para um profissional médico, como também um ato de arrogância, afinal “quem eu pensava que era” para não cortar o cabelo como todo mundo havia feito. Estas duas “acusações” me foram repetidas algumas dezenas de vezes nos meus primeiros dias na faculdade, quando eu era literalmente escoltado por dois seguranças privados entre os três que haviam sido contratados pela faculdade para “impedir trotes” depois que a Unisa foi processada pelos pais de uma caloura, e que outro calouro teve queimaduras na virilha após terem jogado querosene nele porque ele era um “bixo rebelde”. Quando me acusavam de “arrogante” porque eu supostamente “me achava melhor do que os que haviam cortado o cabelo”, a minha resposta era bastante simples: “mas eu acho que ninguém deve ser obrigado a cortar o cabelo”. Meus “superiores” da faculdade ficavam estupefatos...acho que nunca tinham pensado em uma possibilidade tão subversiva! Como assim? É a tradição! Você entra, toma trotes e depois os aplica. Assim você aprende quem manda e quem obedece. E você obedece para depois mandar. É a hierarquia.

O racismo nojento que se expressou nos gritos de “escravos” contra os médicos cubanos tampouco é incomum e para mim não foi novidade. Basta dizer que os trotes contra os calouros são aplicados até o dia 13 de maio, pois é o dia da “libertação dos escravos”. Na visão dos estudantes de medicina, é claro, apenas uma “piadinha inocente” com a carnificina secular à qual submeteram o povo negro.

Vou poupá-los de um tanto de histórias semelhantes que seriam suficientes para um livro e contar apenas mais dois episódios: um deles se deu quando eu cometi o erro de ir a uma “confraternização” da faculdade, fora do campus, onde eu estava totalmente à mercê dos imbecis, cuja opinião sobre mim àquela altura (minha fama de “pau no cu”, como eles diziam para se referir a quem não se adequasse às suas regras e hierarquias, já havia corrido os quatro cantos da faculdade) não devia ser nada melhor do que a que têm sobre os médicos cubanos. Depois de ser submetido a algumas rodadas de cerveja na cabeça, de ser obrigado a beber cerveja com meu próprio cabelo cortado dentro dela, de ouvir todo tipo de insulto gritado e cuspido em minhas orelhas, meus “superiores” me obrigaram a subir em uma mesa para entoar o glorioso hino da faculdade tantas vezes quantas fosse necessário até que todos os presentes se dispusessem a me acompanhar. Faço questão de dividir a letra com vocês:

Pessoal!
Xá! (o coro responde: Vasca!)
Xá! Vasca!
Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!
Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!
O que? Arre-ga-nhar!
Na rima do pudendo (termo médico que designa a fissura formada pelos grandes lábios da vagina)
eu entrei mordendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
Medicina! Santo Amaro! Hooool!

Havia umas tantas outras músicas que expressavam a sofisticação humana dos meus colegas. Vou reproduzir apenas mais uma, em homenagem à coruja loka – singelo símbolo da Atlética (o grande órgão venerado pelos estudantes):

A coruja bota no seu cu!
E goza, e goza, e goza na sua boca!
Loca! Loca, loca, loca, locaaa!
Coruja loca!

Em seguida, após eu passar pelo ritual de iniciação, a pose de oficial do exército foi deixada de lado por um dos veteranos, do sexto ano, que veio conversar comigo “sinceramente”. Disse-me que eu não podia ter aquele tipo de postura, que agora sim eu estava agindo de acordo, que nós precisávamos de união. “Você já ouviu falar da máfia de branco?” Ele disse. “Nós somos a máfia de branco. Se você precisar de ajuda, somos nós que estaremos lá para nos ajudarmos. Numa prova, quando tivermos que colar, somos nós que nos apoiaremos. Se acontecer alguma coisa com um paciente, somos nós que vamos ter que acobertar. Por isto precisamos ficar unidos”.

Sim, é isto: é uma corporação no sentido forte do termo. Eles defendem seus interesses. Por isto se unem para repelir os médicos cubanos que estão entrando em “seu território”. Por isto se unem para defender o Ato Médico para tirar os outros profissionais da saúde do “seu território”. Por isto fazem rituais de iniciação medievais, tais como se faz na polícia ou no exército, tais como os do Capitão Nascimento, para iniciar os “seus” em “sua corporação”. Eles realmente se consideram melhores do que todos os outros seres humanos, e não há exagero aqui. Apenas uma vez consegui conversar com estudantes de outro curso no campus, que abrigava todos os cursos de biológicas. Eles não sabiam que eu era estudante de medicina. Quando lhes disse, imediatamente queriam interromper a conversa: já conheciam este tipo de gente. Apenas se abriram novamente quando lhes confessei que eu também tinha desprezo pelos meus colegas de curso e vice-versa.

Há outra ocasião que quero compartilhar: a visita ao hospital ligado à universidade, o Hospital Geral do Grajaú (HGG), e a visita à unidade do Programa de Saúde da Família (PSF) conveniado com a universidade. No hospital, pela primeira vez fui bem tratado por uma estudante do sexto ano. Era uma moça que talvez não tivesse contato ou não se importasse tanto com a minha “fama”. Ela me recebeu bem, me explicou tudo, foi extremamente gentil. Então, chegaram os pacientes. O HGG é hospital de referência da região, onde vão parar todos os casos minimamente graves. A estudante estava no último ano de seu internato, período em que é “obrigada” a atender no hospital. A rudeza com a qual ela recebeu o paciente me deixou atônito. Pegando a sonda que estava nele e a examinando rapidamente junto a uma papelada, ela identificou que já havia recebido o paciente e que indicara que ele marcasse uma consulta no ambulatório de especialidades da faculdade. “Eu não te mandei ir lá marcar a consulta? Por que você não foi? Por que voltou aqui?” O paciente, certamente intimidado em sua condição de trabalhador e pobre diante do poder implícito do jaleco e do título da “doutora” da “máfia de branco”, respondeu humildemente que ele havia tentado marcar a consulta, mas que eles tinham vagas somente para dali a três meses, e que ele precisava limpar a sonda antes disso, e que não tinha condições de esperar tanto. Perguntava se ela poderia fazer alguma coisa por ela. Mesmo que ela quisesse muito, o que estava longe de ser o caso, não poderia: esta é a principal agonia que eu antevia na minha profissão depois de estar formado - a impossibilidade de ajudar meus pacientes mesmo que fosse um médico competente, porque simplesmente não há nenhuma infraestrutura mínima para realizar o trabalho.

A estudante conseguia habilmente ser gentil quando se dirigia a mim, de forma atenciosa perguntando se eu queria ajudar a trocar a sonda, e estúpida, rude, impaciente quando se dirigia ao paciente que “não entendia nada” das “ordens médicas”. Não posso deixar de lembrar dos médicos cubanos, negros, como os pacientes maltratados daquela interna. Negros “com cara de empregada”, a quem gente que paga alguns milhares de reais por mês para estudar numa faculdade privada de medicina está acostumada a tratar como uma categoria inferior de seres humanos. Assim que o paciente deixou o consultório, ela desabafou comigo: “Ainda bem que só faltam seis meses para eu sair daqui!”. Em seguida, se tudo desse certo, ela faria residência e abriria seu consultório particular, para nunca mais precisar encostar ou se dirigir a um negro ou um pobre na condição de paciente, e eles voltariam a ocupar o lugar invisível de subalternos que a médica desejava para eles em sua vida.

Quando fomos ao PSF, passamos em pequenos grupos de estudantes do primeiro ano nas casas da favela do Grajaú junto com a agente comunitária, recrutada entre os moradores dali mesmo. Imaginem vocês aqueles estudantes que provavelmente nunca entraram em um ônibus na vida, andando em uma favela. Depois de tantas visitas e tantas casas, a agente desabafou conosco: “Ainda bem que vocês estão vindo aqui, para ver como é. Nós precisamos muito de mais médicos aqui. O pessoal se forma e vai embora, nunca mais volta e nós ficamos sem médicos para nos atender.” Ela se afasta, um colega compartilha seus sentimentos íntimos conosco: “Ah, me desculpa, mas eu nunca trabalharia aqui.” Ele continuou seu discurso, mas acho que meu cérebro, após estes anos, preferiu bloqueá-lo de minhas memórias para me poupar um pouco. Hoje, lembrando disso, penso nos médicos que chamam os negros cubanos que deixaram seu país por um salário de R$10 mil reais, cuja metade será paga ao ministério da saúde de Cuba, de “escravos”. Quem trabalharia por esta miséria? Na visão deles, apenas os médicos negros, “escravos”, com “cara de empregada”. Será que eles sabem que isto é muito mais do que ganha a maior parte dos trabalhadores do Brasil? Será que eles se importam? O que meus colegas disseram já responde a estas perguntas.

Eu poderia continuar escrevendo muito, muito mesmo, sobre o que há de podre na medicina. Foram estas coisas que me fizeram largar o curso ainda no segundo ano. Eu não seria capaz de conviver com esta gente, com seu modo de pensar, de viver. Talvez eu ficasse deprimido, talvez fizesse um atentado ao estilo “jovem americano” entrando na faculdade e fuzilando a todos. Preferi sair. Amadurecendo minha visão política nos anos seguintes pude perceber as causas sociais que levam os médicos e a medicina a serem assim. Talvez esta experiência pessoal tenha ajudado a me empurrar um pouco mais rápido para o socialismo. O que sei é que trazer um punhado de médicos cubanos pode escancarar a mentalidade podre de nossos médicos, mas pouco ou quase nada pode fazer para ajudar a que o povo pobre e trabalhador a ter acesso a condições mínimas de saúde. E, sem dúvida, a mudança desta situação não virá pelas mãos de Dilma nem de nenhum governante a serviço deste Estado. Virar a medicina brasileira de cabeça para baixo é uma tarefa para a revolução operária e socialista.

3 comentários:

alala disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rafael disse...

Interessante post e relato! Você não chegou a ter aula ou conhecer o Willy Kenzler?

Fernando disse...

Sim, Rafael. Eu tive aula com o Willy, um pouco...