Posso dizer sem muito receio de
errar que o período no qual cresceu minha geração foi um dos mais tristes e
sombrios desde que se iniciou a história do capitalismo. Está certo que em
relação a momentos como as guerras mundiais ou a crise dos 30, ou mesmo os
primórdios do capitalismo industrial, grande parte das pessoas sofreu menos
privações materiais ou sofrimento físico. Mas é uma geração da qual a burguesia
roubou algo muito mais valioso do que qualquer privação material poderia impor:
a possibilidade de acreditar em um mundo distinto, em um futuro melhor para a
humanidade; s possibilidade de se ver enquanto sujeito da história e da
superação da miséria da humanidade. A mim, pelo menos, nada parece mais
assustador do que a ideia de que a história acabou – que, por incrível que
pareça, teve nas décadas passadas seu breve período de apogeu e triunfo.
Digo
isto para tentar explicar um pouco que seja o que alguns jovens desta geração,
alguns dos quais estas ideias pareciam inacreditáveis, podem sentir diante de
uma pequena – porém fundamental –
trincheira no combate a esta derrota que a possibilidade de um futuro sofreu
enquanto nascemos e crescemos. A trincheira da qual eu falo é fruto de um
combate árduo que já dura mais de uma década, protagonizado por algumas
centenas de operários e com o apoio imprescindível de uma camada mais ampla de
estudantes, desempregados, indígenas, presidiários, donas de casa, enfim, de
todo um setor da população que corretamente reconheceu na luta destes trabalhadores
o seu próprio combate por uma vida mais digna. Trata-se de um pequeno exemplo
da luta de classes – aquela que queriam nos fazer acreditar que havia
desaparecido – na qual a classe que gesta dentro de si o futuro – o
proletariado – conquistou para si e para os demais explorados e oprimidos do
mundo, uma vitória.
Foi
na crise de 2001 na Argentina que isto começou. Com a queda de cinco
presidentes, a revolta de amplos setores da classe média, uma crise econômica
profunda e generalizada, centenas de fábricas foram ocupadas. O capital tratou
mais uma vez de demonstrar sua força, maleabilidade e poder não apenas de
repressão – acabando com diversas ocupações com o aparato policial – mas também
de cooptação – tratando de impor a que muitas ocupações se tornassem
cooperativas e os seus trabalhadores passassem a ser pequenos empreendedores,
pequenos patrões e capitalistas. Em Zanon, fábrica de cerâmica localizada na
província de Neuquén, no sul da Argentina, a história foi outra. Os
trabalhadores ocuparam a fábrica, colocaram-na para produzir, resistiram
bravamente todas as investidas da polícia, conquistaram o apoio do povo pobre,
dos estudantes e dos indígenas. Um pequeno exemplo mostra a grandeza da luta:
os presidiários de um presídio local decidiram apoiar a luta, e para isto
fizeram greve de fome para doar sua própria comida aos trabalhadores de Zanon
em luta.
A
fábrica virou patrimônio do povo, doando sua produção para a construção de
hospitais e escolas que o governo se recusava a construir. Aumentou o número de
postos de trabalho, empregando uma parte dos desempregados que apoiaram a luta
dos operários. Estudantes da universidade se aliaram aos trabalhadores
ajudando-os a gerir os aspectos da produção dos quais eram tolhidos no sistema
patronal da divisão do trabalho entre o intelectual/técnico e o
físico/produtivo, colocando de pé, assim, um verdadeiro pacto
operário-universitário que mostra o potencial transformador da universidade
quando ela coloca seu conhecimento a serviço dos trabalhadores. Os indígenas do
povo Mapuche apoiaram os operários cedendo-lhes a matéria-prima, argila, que se
encontrava em seu território e que antes era roubada pelo proprietário da
fábrica.
Após
dez anos de luta, o povo de Neuquén e os operários de Zanon (rebatizada como FaSinPat
– sigla para Fábrica Sem Patrões) conseguiram dobrar até mesmo o sagrado
direito burguês da propriedade privada, e impuseram que se reconhecesse
legalmente a expropriação da fábrica. Mas sua luta vai muito além dos limites
de uma fábrica, pois os operários aprenderam no curso de sua luta que é
necessário lutar por muito mais, que as injustiças não se iniciaram e não
terminam nos portões de Zanon, e que tampouco é possível derrotá-las
restringindo a luta. O primeiro passo foi retomar o Sindicato Ceramista de
Neuquén das mãos da máfia que o controlava, uma verdadeira corja de burocratas
sindicais que sustentavam-se fartamente fazendo do sindicato um mantenedor dos
interesses patronais. Em Neuquén, como em qualquer parte do mundo, a tarefa de
expulsar os burocratas dos sindicatos é fundamental para retomar um dos
principais instrumentos de lutas dos trabalhadores. Para assegurar que o
sindicato permanecesse assim, o estatuto do sindicato foi reformulado de forma
a que seus dirigentes não gozassem de privilégios, e que tivessem o limite de
um mandato sindical para que depois retornassem a seus postos de trabalho nas
fábricas. Como ensinou Marx há um bocado de tempo, nossa consciência está em
primeiro lugar determinada pelas nossas condições materiais de vida. Um
dirigente sindical que receba um salário bem maior do que aquele que recebia na
fábrica, e ainda por cima possa se manter por décadas fora da linha de produção
se reelegendo indefinidamente como dirigente sindical, tem todos os motivos
para se tornar um burocrata, que passará a vender os interesses dos
trabalhadores aos patrões em nome de garantir seus próprios privilégios
materiais. É o caso de quase todos os ratos parasitas da CUT, Força Sindical e
outras centrais sindicais vendidas em nosso país.
Vários
anos depois, os operários deram mais um passo na luta contra seus inimigos de
classe, desta vez conquistando um posto avançado dentro de território que, por
sua própria natureza, é do inimigo: o parlamento de Neuquén. A partir da
conformação de uma Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT, na sigla em
espanhol), composta pelo PTS (organização
irmã da LER-QI, na qual eu milito aqui no
Brasil), pelo PO e pela IS, se elegeram dois operários de
Zanon para revezarem o mandato entre si e com mais um companheiro da IS. O
primeiro ano foi ocupado pelo operário de Zanon, o companheiro Alejandro López,
que não é de nenhum partido. Atualmente, está na bancada parlamentar Raul
Godoy, também operário de Zanon e dirigente do PTS. Da mesma forma que no
sindicato, o mandato parlamentar não poderia significar um privilégio material,
e Godoy recebe o mesmo salário que recebia na fábrica, doando o restante para
um fundo de lutas dos trabalhadores. Propôs também um projeto de lei que ficou
conhecido nacionalmente, de que todos os parlamentares recebessem o mesmo
salário que uma professora do ensino básico. Para nós, esta é uma atuação
exemplar, que denuncia a podridão do regime político da burguesia e contrasta
enormemente com o péssimo exemplo do
parlamentar do PSOL Jean Wyllys, que recentemente defendeu publicamente o
salário de R$ 26.000 que recebem os parlamentares aqui, como “justo”. Godoy
também esteve recentemente na Grécia, conversando
com os operários da fábrica Vio.Me – sob controle operário desde 2004 –
para apoiar sua luta com a experiência de Zanon.
Isto
é apenas um pouquinho da história da luta de Zanon. Que por sua vez é ainda uma
pequena, minúscula, vitória dos trabalhadores em sua luta contra o capital. Mas
para nós, revolucionários que dedicamos nossas vidas a esta luta, a luta de
Zanon é um grande exemplo. É isto que explica o plano de dez jovens que
decidiram viajar em dois carros até o sul da Argentina para conhecer de perto
esta experiência. Em Porto Alegre, os companheiros fizeram uma grande campanha financeira,
organizando festas e arrecadações para poder custear sua viagem. E eu, quando
fui convidado a fazer parte da viagem como parte da delegação da LER-QI, me
senti privilegiado pela oportunidade de ir pessoalmente pela primeira vez ver o
exemplo que meus camaradas do PTS dão em conjunto com os operários
independentes em Zanon.
Revezando-nos
em cinco motoristas, partimos pelas estradas em uma comitiva de dez pessoas,
entre paulistas e gaúchos; militantes da LER-QI e companheiros independentes;
professores, estudantes e metroviários; todos com o objetivo comum de buscar o
exemplo e a inspiração para seguirmos em nossas cidades e no dia-a-dia na luta
coletiva e histórica de milhões de mulheres e homens contra o sistema de
exploração e miséria em que vivemos.
Mas
no meio do caminho havia uma lebre. Eu, que estava dirigindo o carro, não me
lembro de nada devido a uma pancada na cabeça. Só sei do que me contaram, que
quando fui desviar da lebre, certamente por impulso, o carro capotou, ficando
completamente destruído e ferindo três companheiros. Pelo estado em que o
carro ficou, somos todos unânimes em afirmar que tivemos bastante sorte.
Comigo, apenas uma mão quebrada e dois pontos na outra, além da batida na
cabeça. Valéria teve um corte no rosto, uma pancada na cabeça e uma clavícula
fraturada; também não foi nada muito grave. Mas, infelizmente, nossa
companheira Paula teve ferimentos mais graves: fraturou a bacia e a vértebra
lombar, L2, que por sorte não atingiu sua medula. O acidente na estrada da província
de La Pampa, quando faltavam cerca de 400 km para chegarmos a Zanon, transformou nossa viagem drasticamente.
Recebemos
prontamente toda a ajuda dos poucos camaradas do PTS que militam em Santa Rosa,
capital de La Pampa, que em plena campanha eleitoral se desdobraram em mil para
nos ajudar. Imediatamente também a LER-QI e o PTS enviaram camaradas para
ajudar em tudo o que fosse possível. Paula foi informada que precisava fazer
uma cirurgia para colocar uma prótese no lugar da vértebra fraturada, que
deveria ser feita o quanto antes pois qualquer movimento indevido poderia
atingir sua medula, trazendo graves conseqüências e podendo mesmo deixá-la
paraplégica. Contudo, se há uma coisa que não vale nada no capitalismo, é a
vida de uma pessoa que não tem dinheiro. E este é o caso da minha companheira
Paula, cuja cirurgia foi adiada já por três vezes, com o hospital inventando
mil histórias absurdas e mentirosas, como de que a prótese precisaria vir de
Buenos Aires, o que foi desmentido pelo próprio hospital ao cônsul brasileiro
em uma ligação telefônica.
Desde
os primeiros momentos, Paula mostrou a força, a firmeza e a coragem de uma
verdadeira revolucionária. Apesar da angústia de ficar presa à cama,
praticamente imóvel, apesar das fortíssimas dores que sente e que os
anestésicos só são capazes de aliviar parcialmente, apesar dos absurdos que o
sistema público de saúde a está submetendo, Paula encara a sua situação de forma
valente, apesar dos momentos inevitáveis de angustia, tristeza e desespero.
Insistiu aos companheiros que estavam em condições que seguissem a viagem até
Zanon para conhecer a fábrica, mesmo chorando porque não poderia ir com eles.
Combinei, ao pé do seu leito, que não deixaremos de ir até lá quando ela
estiver melhor. Em meio a sua dor, Paula não deixa em nenhum momento de sentir
e manifestar gratidão pelos companheiros que estão se esforçando para ajudá-la,
em especial a Silvia que desde o começo está ao seu lado no hospital, e sua
mãe, que sem falar uma palavra de espanhol também está lá a seu lado.
Em
Porto Alegre, ocorre uma emocionante demonstração da solidariedade entre os
lutadores, com o Centro Acadêmico de História da UFRGS, onde Paula estuda,
organizando uma campanha financeira, e uma vigília no consulado da Argentina
para pressionar os burocratas a que realizem logo a cirurgia da Paula. Aqui em
São Paulo nós da LER-QI também estamos organizando uma comitiva para ir ao
consulado. O cartunista Latuff também se solidarizou e fez uma charge
denunciando o enorme descaso dos governos brasileiro e argentino com a situação
da Paula.
Se
não pude conhecer Zanon nesta viagem, pude aprender muito mais na prática sobre
a solidariedade de classe. A sensibilidade, a disponibilidade e a atenção dos
camaradas do PTS, sejam os companheiros de La Pampa, seja do companheiro Juan
que veio de Neuquén nos ajudar, é uma lição revolucionária. Sem nunca terem
visto Paula e nem nenhum de nós na vida,
os camaradas fizeram de tudo para nos ajudar. Os laços que unem os
revolucionários, e que os unem aos seus companheiros de classe, podem ser muito
mais fortes do que qualquer amizade. O que nos une é um projeto de vida, uma
luta em comum. Aprender a ser mais humano, contudo, é uma tarefa difícil neste
mundo, e os camaradas sem dúvida me ajudaram muito nisto.
As
maiores lições e exemplos, contudo, quem deu foi a Paula, deitada em sua cama
no hospital. Para além de todo o carinho que Paula tem com todos os que a
ajudam, ela mostra uma grandeza de espírito imensurável ao não deixar que a dor
que a aflige feche seus olhos para a exploração dos que estão ao seu redor. Em
seu leito, escreveu no seu perfil no Facebook: “a
situação dos enfermeiros e enfermeiras aqui é durissíma, chegam a trabalhar 5
dias direto, o hospital sempre lotado de situações horríveis, o meu caso não é
nem de longe o mais grave, o esgotamento desses trabalhadores é visível, a
galera que faz a limpeza do hospital é terceirizada, não preciso dizer que
sendo assim trabalham pra caralho ganhando uma miséria e são na maioria
mulheres, juntando lixo hospitalar que é perigosíssimo, e limpando os quartos e
banheiros todos os dias correndo o risco de pegar infecções. Digo tudo isso
porque essa luta que todas e todos vocês estão travando ultrapassa a pressão
para que se agilize minha cirurgia que é urgente, mas nos demonstra a
desumanização de todo um sistema, o quanto essa merda explora, mata, não está
nem aí e oferece o mínimo para o ser humano poder seguindo sendo explorado, mal
tratado em nome do lucro das figuras ilustres que estão bem confortáveis nesse
momento tendo resolver um caso de descaso.”
Quando leio isto penso que
precisamos urgentemente de mais Paulas no mundo. Quando tudo isto passar, Paula
ainda irá em algum momento conhecer Zanon. Mas, na verdade, o que há de melhor
em Zanon já está dentro dela. E me orgulho de sua luta hoje e das que iremos
travar lado a lado no futuro: a mesma luta dos operários de Zanon, da classe trabalhadora
mundial e dos explorados deste mundo.
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