quinta-feira, abril 06, 2017

Há cinco anos de sua morte, mais uma carta para ninguém



Em três dias serão cinco anos, e venho aqui para escrever como se você fosse ler. Você não vai.

Faz tempo, muito tempo que não falo sobre essa ferida. Eu falo, mas não falo. Não assim. Sobre esse presente eterno, que com tanta frequência me faz sentir como se não houvesse passado um dia sequer. Ultimamente, parece que o tempo volta, volta mais pra perto. Porque tudo tem sido tão difícil, tão áspero.

Era mais fácil transformar a dor em ódio, o ódio em luta. O seu caminho me vem, cada vez mais palpável, mais verossímil, mais meu, como quando eu era menor. Só que com o duro realismo do adulto. 

Mais algumas pessoas amadas e conhecidas seguiram por ele nesses anos. Eduardo Rosa e Márcia Mello foram os mais próximos. Pessoas incríveis que um mundo assim, tal como ele é, verdadeiramente nunca mereceu; como a você.

Outros amados tentaram, uma delas em uma triste lembrança do aniversário de sua ida; mas escaparam, escaparam dessa vez como você escapou de tantas. Por quanto tempo? Nunca deixo de pensar nessa breve janela em que te conheci. Por um triz, desde que você escapou da penúltima vez. Como poderia ter escapado da última...

Um dirigente revolucionário, mais um camarada, também tomou esse caminho. Um duro golpe nas mentiras auto-complacentes de quem ainda acha que há "imunidade revolucionária"para a crueza do mundo.

Conheci outras companhias, mentoras, ombros decisivos nas horas vagas que, décadas antes, haviam partido também. Sylvia Plath e Ana Cristina César foram meus amores, com suas vidas, mortes e dores. Ironicamente, as duas bem perto da minha idade. Mais perto da minha do que da sua, que hoje está eternizadamente jovem, tal como elas.

Também o filho de um camarada tão bom, tão forte e determinado, partiu, em mais um triste lembrete de nossa impotência para salvarmos uns aos outros, por melhores que sejamos.

E, há dias, mais uma, a mais jovem, uma garota que também buscava mudar o mundo; o mundo a venceu, e com isso, mais uma vez, venceu a todos nós. Hoje foi enterrada, e eu que nunca a conheci penso nela lembrando de você e de todas essas dores.

As pequenas coisas ainda não se apagaram, e as decisões que pareciam pequenas, mas que poderiam ser decisivas para vencer mais uma batalha (por quanto tempo nunca se sabe) se tornam por vezes fantasmas imensos, muito maiores do que eram há alguns anos. Eles me acompanham dia a dia. As coisas que não fiz, as palavras que não disse são um tormento que carrego.

Seu pai, que carregou certamente muitos fantasmas, não quis ou não pode (se há diferença) ficar muito tempo depois que você partiu.

E também quem mais me ouviu e lutou comigo contra os meus martírios, tantas vezes invisíveis para todos, também partiu, me deixando uma vez mais órfão de amparos nesse mundo frio.

Alegrias e esperanças se corroeram, não resistiram à inclemente prova do tempo. Tudo se desmancha, deixando seu amargo. Sua solidão. A triste constatação da efemeridade de tudo que tive com sua morte parece cada vez mais ser a sensação mais sólida e confiável na vida. Pessoas somem, sem deixar rastros, exceto as dores da partida que carregamos em memórias solitárias. Com o coração calejado pela sua perda eterna e repetida, tomo esses acréscimos de dor com cada vez mais cinismo e resignação.

Eu sigo mancando, talvez mais do que nunca. Se luto, mais e com mais força que antes, é uma luta desesperada, como jamais foi. Sem gradil, sem cordão de segurança, quase de olhos vendados, esmurro o mundo que me esmaga, ando nessa corda bamba. Jogo para o alto tudo que me segura, e sigo em frente. Não paro, não vou parar. Por você eu não paro, e por todos esses que perdemos e perderemos na luta. Há cinco anos, sigo com a ferida aberta, e abrindo-se, e digo a mim mesmo que não é preciso saber se é possível vencer para lutar. O corpo, a cada dia, um campo de batalha mais e mais difícil de se enfrentar.

Eu não segurei sua mão como devia, e ninguém segura nada como deve. Fazemos as coisas como podemos, e sempre podemos mal e precariamente. Precariamente, como você se agarrou à vida, e nós nos agarramos um ao outro. Eu sigo agarrado, precariamente, à sua mão que não existe mais. À vida que não tivemos. Ao intervalo fugaz que chamamos de nosso - que eu, na verdade, chamo sozinho, pois você não chama mais nada, exceto em memórias fantasiadas.

Não há volta, nem há salvação. Cada vez mais sinto que é necessário pedalar, porque a cada leve desacelerada sinto a bicicleta bambeando e ameaçando tombar. Sinto muito sua falta, e às vezes te invejo. Às vezes já não sinto mais a aceitação resignada de minha impotência, mas verdadeiramente o conforto de você poder ter acabado com aquela ou essa dor infinita que não merece ser chamada de vida. 






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