No rádio, numa noite triste,
ordinariamente triste na cidade
a mulher interrompe minha tristeza de mim mesmo
com sua voz no rádio ela falava
com seu jeito técnico e indiferente
e os especialistas se jorrando em números
da subnutrição dos guarani-kaiowáa
da fome das crianças
dos pais que não comem para alimentar os filhos,
da impossibilidade de cultivar
e da falta de renda para comprar
da marca cotidiana da fome
do suicídio, da vida roubada
tudo tinha o nome preciso, técnico, despersonalizante
de insegurança alimentar
tudo bem documentado
o frio assassinato de um povo
mas logo minhas lágrimas são deixadas como loucas
a rolar sozinhas, porque os guarani-kaiowaa já não existem
deixaram aquele rádio e a mente de seus ouvintes
morrendo de fome no distante Mato Grosso do Sul
agora a locutora fala sobre o grande jogo
o vôlei entre brasil e frança
que se o brasil perde é desclassificado
"a nossa responsabilidade é grande", diz a locutora
com o vôlei, a nossa responsabilidade é grande.
segunda-feira, agosto 15, 2016
segunda-feira, agosto 08, 2016
Cheguei perto só uma vez, pelo canto dos teus olhos, tuas letras. Tão perto e tão distante; quis tocar tua vida, teus sonhos, tuas angústias, dúvidas, medos, porquês. Mas apenas senti tuas palavras, daqui de longe, de onde não consigo cheirar teu cabelo, tua pele.
De onde não dá pra ver a lágrima se acumulando, ardida e devagar, no canto do teu olho. Ali onde tremula, vacila, hesita, antes de escorrer num piscar.
O olhar que vejo é o teu, mas não é. É o meu olhar olhando para o teu, tentando seu o teu, ser teu. Como sempre é, em qualquer amor. São todos inventados, são todos verdadeiros.
E o meu é teu. O meu sentimento, pelo qual já passei por cima, volta, volta e volta. Procura o teu, um pouco desesperado, é verdade. Paro, respiro, é difícil conter nossas invenções. As invenções que faço das tuas palavras, que destilam, concentram, se tornam meus sonhos. E ardem.
Como faço para tocar não só essas palavras? O que passa por dentro, pelo lado, por trás delas. Como faço para entrar por essa porta, que nunca sei se está aberta, entreaberta, ou se só me provoca e me inquieta à distância? Quero teus desejos, os protegidos da vida comum, brincando com os meus. Mas quero teus dias, duros, problemas, suas lágrimas. Quero só te dar um abraço forte no fim do dia e dizer: "eu tô aqui". E você saber que é de verdade. Verdade como o seu olhar, pelo qual eu olho. E meu olhar, que é teu.
sexta-feira, julho 29, 2016
Sonhando
As noites são raras.
Raras noites em que podemos tocar as estrelas
em que nossa língua toca os sonhos
que guardamos
represados
no peito
em um copo e outro
passando em revista
as dúvidas
largando na sobriedade
uma timidez persistente
me perco sem mapa
na constelação que sobe
de ponto a ponto,
nas costas de um sonho
sonhando retorno, mergulho
adormecido, desperto
me entrego
afago
sem mais
nas palavras nos perdemos
mas nos corpos
esses que falam a língua do desejo
encontramos o desejo
da palavra
do toque
de tanto
de tudo
às vezes é melhor falar a língua do corpo
às vezes, às vezes, ela sabe mais
dos desejos que a palavra não alcança
se minhas palavras são pouco
para dizer esse desejo
te peço então
me tome
todo
Há muitas coisas que queria te dizer, mas não sei como...
Há muitas coisas que queria te dizer, mas não sei como...
sexta-feira, julho 15, 2016
Ímpia trinta e cinco
Trinta e cinco anos
com sorte, você chega lá
sem ser espancada, esfaqueada
queimada, desmembrada
violada, despida, escarrada, excomungada
um cadáver inerte jogado no mato ou na sarjeta
suicida ou louca, negada mil vezes
pela Sacrossanta Família
pela desonra de ter enfrentado
o valor Sagrado
de que identidade, amor e sexo
são apenas dois nesse mundo
Dois, e não mais. Como quis a Natureza.
Bruxas ao fogo. Hereges.
Quando as pessoas ardiam em grandes fogueiras
para purificar seus pecados
de lavar as mãos
de escrever com a mão esquerda
de dizer que a terra é redonda
Ou que Deus não existe
e que não é sua sua sabedoria infinita
que nos guia, nos determina,
nos dá e tira a vida e suas regras, os homens e mulheres.
Dois e não mais. Como quis Deus.
Não se chegava aos trinta cinco
nos bons tempos
em que se respeitava e louvava
as vontades de Deus, tão maiores que as nossas
que o nosso sujo sonho de liberdade
Sem higiene, sem bactérias, sem frescuras
a boa e pura vida das pessoas simples
e tementes a Deus
a boa e pura vida de quem trabalha de sol a sol na lavoura
e queima tudo aquilo que não entende
Quem precisa de mais do que trinta e cinco anos
de uma vida tão pura, tão boa, tão fiel a si mesma
e a seu Deus, que sabiamente guia, de sol a sol
e que tudo mais vá para o inferno
e assim vivemos
Trinta e cinco, e não mais. Como quiseram, Deus e sua Natureza.
Teu corpo é a afronta, invoca a fúria
de um tesão proibido, reprimido
aquilo que não se entende, se mata
o que questiona a natureza que a natureza nunca nos deu
as regras ditadas aos corpos, aos nossos, que não nos pertencem
que vendemos tão barato às igrejas, aos patrões, ao estado
à uma ilusão fugaz de felicidade
ou a uma dura necessidade de sobrevivência
Ao fogo, Herege.
pela ousadia de querer seu corpo teu.
de sonhar que nós somos aquilo que de nós fazemos
e não o que foi prescrito pela Lei ancestral, incorruptível, incontestável
que nos impõe o dízimo, o salário, a repressão e a resignação
Isso e não mais, tal como as coisas são.
Você, que é sem nome, abominável, não sabe?
Não se pode ser aquilo que ninguém é
que não se ousa dizer, tocar, olhar
um corpo que foge à Lei
O gosto proibido de sua carne será expiado das impurezas
o sangue reluzindo na suja lâmina
para que eles, purificados, se esqueçam
de que também, no fundo, desejam ser
tudo que não podem. Tudo que é impuro.
Tudo que é não mais como quis Deus e sua Natureza.
Naquele tempo de trevas,
se alcançava os trinta e cinco com sorte
Trinta e cinco e não mais, como quis Deus.
Em nosso tempo de trevas, quem comete o pecado de ser o outro
o outro da identidade, da sexualidade, da norma natural
ditada pelo seu Deus,
ditada pela sociabilização,
pelos fenômenos intransponíveis do Ser e do Mundo
alcança os trinta e cinco com sorte.
sábado, março 05, 2016
Quem mandou você ser homem?
Viver é estar imerso
em contradição e conflito. Os conflitos que nossa sociedade
capitalista pode nos trazer são bastante desagradáveis. E eles começam antes, bem antes da gente nascer.
Quando vimos ao mundo, já temos um lugar assentado nele, um lugar no
desejo de um outro: de nossos pais, do estado, das instituições e
estatísticas. Já decidem por nós muitas coisas sobre as quais não
temos direito de opinar, e pelas quais teremos que lutar para poder
fazer delas escolhas nossas.
Uma delas é que quando
chegamos já temos um lugar na divisão sexual do mundo: nossa
história social determinou que as pessoas fossem divididas em dois
gêneros – homem ou mulher. E, assim, encaixaram você em um deles.
Como tudo que é ideológico nesse mundo, essa divisão se coloca sob
uma cobertura de “eterno, natural, permanente, imutável”: uma
coisa que nasceu assim, permanecerá assim e continuará assim depois que você morrer. E, bem,
olhando pro mundo, cheio de homens e mulheres, parece bem difícil
dizer que não seja assim.
A divisão biológica
entre machos e fêmeas
Para se apresentar como algo
“natural”, e não como o que é: uma construção cultural e histórica, a divisão entre gêneros
(que se coloca como divisão entre “sexos”, e vamos discutir essa
diferença) tem que se colocar como pautada por questões que
transcendem nossa vontade e nossa intervenção: ela se dá no corpo,
está marcada por forças além de nosso controle já no nascimento.
Vamos ver como, em 1933, Sigmund Freud, pai da psicanálise, discute
essa determinação corporal em uma palestra intitulada
“feminilidade”:
Ao deparar com um outro ser humano, a primeira distinção que fazem é “macho ou fêmea”, e estão habituados a fazer essa distinção com tranquila certeza. A ciência da anatomia partilha a sua certeza até determinado ponto e não muito além dele. Macho é o produto sexual masculino, o espermatozoide, e seu portador; fêmea é o óvulo e o organismo que o abriga. Nos dois sexos formaram-se órgãos que servem exclusivamente às funções sexuais, que provavelmente se desenvolveram em suas configurações diversas a partir da mesma disposição inata. Além disso, em ambos os sexos os demais órgãos, as formas do corpo e os tecidos, mostram influência pelo sexo, mas esta é inconstante e de medida variável, os chamados caracteres sexuais secundários. E a ciência também lhes diz algo que vai de encontro à suas expectativas, e que talvez se preste a confundir seus sentimentos. Ela lhes chama a atenção para o fato de que algumas partes do aparelho sexual masculino se acham igualmente no corpo da fêmea, ainda que em estado atrofiado, e o mesmo acontece no macho. Nisso ela vê sinais de bissexualidade, como se o indivíduo não fosse homem ou mulher, mas sempre as duas coisas, apenas um tanto mais de uma que da outra. Vocês são convidados a familiarizar-se com a ideia de que a proporção em que masculino e feminino se misturam, no ser individual, está sujeita a consideráveis variações. Mas como, excetuando casos raríssimos, apenas um tipo de produto sexual – óvulo ou sêmen – se acha presente numa pessoa, vocês devem ter dúvidas quanto ao significado decisivo desses elementos e concluir que o que constitui a masculinidade ou feminilidade é uma característica desconhecida, que a anatomia não pode apreender.
Assim,
Freud institui na psicanálise, a partir das descobertas da
fisiologia, uma dúvida sobre esse elemento dado como certo: mesmo
no plano do somático, do corpo físico, a fronteira entre macho e
fêmea não é tão nítida quanto faz crer nossa cultura. Nas
décadas posteriores a esse escrito freudiano a ciência avançou a
ponto de mostrar que tal território entre a polaridade macho/fêmea
era muito maior ainda do que podia se supor naquela época. O
critério genético de distinção sexual, determinado pelo par de
cromossomos XY para homens ou XX para mulheres foi colocado à prova
pelas chamadas síndromes que traziam diferentes combinações
cromossômicas, como a de Klinefelter (XXY), Turner (XO), Triplo X
(XXX), La Chapele (XX macho), Swyer (XY fêmea) entre outras (XXYY,
XXXY, XXXXY, XYY), demonstrando que tal critério carrega em si uma boa dose de normatividade arbitrária, ainda que tais condições genéticas sejam
relativamente incomuns. Além destas condições genéticas, a
medicina foi avançando em sua compreensão de outras condições
fisiológicas que colocam em xeque os padrões considerados “normais”
para delimitar homens e mulheres, como hiperplasia adrenal congênita,
síndrome de insensibilidade aos andrógenos, deficiência de 5 alfa
redutase, entre muitas outras (chegando a mais de 30) que podem dar
características distintas à genitália, gônadas (glândulas
produtoras de gametas – testículos ou ovários) ou a caracteres
sexuais secundários, como voz, massa muscular, produção de pelos
etc.
Antigamente,
com um conhecimento médico ainda restrito, a condição de uma
genitália ambígua era referida como hermafroditismo, termo ainda utilizado popularmente. Contudo, tal termo traz em si uma forte
conotação pejorativa e uma carga de preconceitos e concepções
equivocadas, e foi substituído tanto no jargão médico como entre as próprias pessoas pertencentes a esse segmento pelo termo intersexo ou DSD
(Diferenças do Desenvolvimento Sexual). Entre as pessoas intersexo
há quem hoje procure retomar o termo hermafrodita e ressignificá-lo,
dando a ele um caráter distinto e mesmo como uma forma de combater o
preconceito contra as pessoas intersexo, talvez de forma similar ao que se procura fazer com termos como "bicha", "viado" ou "sapatão". É difícil hoje estimar
exatamente a frequência de pessoas intersexo na população, mesmo
porque não há um consenso sobre quais condições fisiológicas são
consideradas intersexo, já que muitas diferenças genéticas não
apresentam diferenças no fenótipo (aparência externa) ou
muitas condições de DSD se manifestam apenas na puberdade. Contudo,
os dados que apontam para pessoas nascidas com uma genitália
distinta da divisão padrão entre homem e mulher atestam um a cada
1500 ou 2000 nascimentos, o que mostra que não é uma condição tão
rara quanto se costuma pensar. (Quem quiser saber um pouco mais pode ler aqui).
A
primeira conclusão a que isso nos leva é que a divisão
anatômica/fisiológica (ou seja, de “sexo”, tomando essa palavra
como a parte biológica da divisão de gênero) para definir a
binariedade homem/mulher é um mito. Pode-se dizer que a frequência
de pessoas intersexo é muito baixa para ser considerada mais do que
uma exceção, mas a realidade não é essa. Uma pessoa em cada 1500
não se encaixa sequer nos critérios biológicos de homem/mulher, e
ignorar esse fato é uma violência contra essas pessoas. O que nos
leva à segunda questão: a binariedade leva a mutilações físicas
e danos psicológicos profundos cometidos contra as pessoas
intersexo. Ainda hoje, o procedimento médico padrão é o de uma
intervenção cirúrgica e hormonal em estágio extremamente precoce
e de forma totalmente não consentida sobre essas pessoas (pois,
afinal, como um bebê vai ter qualquer consentimento), nos quais
médicos e pais “decidem” o sexo, e portanto o gênero, no qual
essa criança será forçosamente recebida e enquadrada no mundo. A
questão é que justamente por não haver nenhuma opção reconhecida
em nossa sociedade por fora da binariedade homem/mulher, se afirma
que o “menos traumático” para a criança intersexo é de ser
sociabilizada de acordo com um gênero decidido à sua revelia, e que pode não ser condizente com a identidade de gênero que essa criança irá assumir posteriormente. E se
cria um espectro de medo e vergonha para essa criança em relação à
sua condição intersexo, que, se revelada aos amigos, professores,
etc. poderia levar ao preconceito e estigmatização. Se ignora que a
violência cometida por esses pais e médicos é a de impôr um corpo
e um padrão a essa criança, e isso é induzido pela ideologia da binariedade de gênero.
O
gênero para além do biológico
Ao
falar das pessoas intersexo discutimos como o dado fisiológico é
insuficiente para determinar o que são homens e mulheres, mas também
pudemos ver que há algo que está além do biológico e que é tão
imperativo em nossa sociedade que faz com que médicos e pais façam
intervenções cirúrgicas e hormonais nas crianças para se adequar
a esses padrões. Ou seja, em nossa sociedade somos obrigados a ser
homens ou mulheres. Há apenas duas opções, e é a isso que
chamamos binariedade. O que queremos apontar é que se chamamos de
sexo essa característica fisiológica, o gênero (homem ou mulher,
masculino ou feminino) está além disso, e envolve um lugar social
em que a pessoa deve se inserir. Para iniciar essa discussão,
voltemos à palestra de Freud, em 1933, quando ele passa do biológico
ao psicológico na tentativa de questionar a feminilidade:
Estamos habituados a empregar “masculino” e “feminino” também como atributos psíquicos, e, da mesma forma, transpusemos a noção de bissexualidade para a vida psíquica. Dizemos, então, que uma pessoa, seja homem ou mulher, comporta-se de maneira masculina num ponto, e feminina em outro. Mas logo vocês verão que isso apenas significa ceder à anatomia e à convenção. Não podem dar nenhum conteúdo novo aos conceitos “masculino” e “feminino”. A distinção não é psicológica; quando falam em “masculino”, normalmente querem dizer “ativo”, e quando falam em “feminino”, “passivo”. É certo que existe essa relação. [em seguida Freud fala de analogias ao papel “ativo/passivo” de espermatozoides e óvulos, do ato sexual ou de espécies animais, analogias que constesta e que nos parecem tão inférteis que não as transcreveremos] Mesmo no âmbito da vida sexual humana vocês logo percebem como é insatisfatório identificar a conduta masculina com a atividade e a feminina com a passividade. Em todo sentido a mãe é ativa em relação ao filho, mesmo do ato de mamar podemos dizer tanto que ela dá de mamar à criança como que deixa a criança mamar. Quanto mais nos afastarmos do estrito âmbito sexual, mais nítido ficará esse “erro de superposição”
Assim,
Freud conclui que é arbitrário atribuir às mulheres
características como passividade e docilidade e atividade e
agressividade aos homens como um dado inerente de sua psicologia.
Também a filósofa Simone de Beauvoir, em seu profundo tratado “O
Segundo Sexo”, se pergunta sobre o que determina o feminino e como
foi que, em algum momento da história, o homem se impôs como
dominador e instituiu o patriarcado. Procurando seus fundamentos na
filosofia existencialista, ela vê em tempos primordiais a divisão
do trabalho entre a manutenção da prole e a coleta para mulheres, e
a caça para os homens; sendo esta mais exigente em termos de
transcendência, já que o homem precisa de instrumentos,
ferramentas, inventividade para poder sobrepujar obstáculos
naturais, ela vê nisso um sentido onde a Existência transcende a
Vida, e nisso um significado que o homem pode atribuir a si mesmo e a
mulher não, já que sua função entregue à espécie a prendia
excessivamente à prole. Ainda que excessivamente idealista, a meu
ver, a explicação de Simone conflui com o questionamento de Freud
no fundamental, e também com a concepção materialista e dialética:
não há uma essência masculina ou feminina, seja essa fisiológica
ou psíquica – as diferenças que instituímos aos papéis de
gênero são criações culturais e históricas, fruto das
circunstâncias.
A
natureza, a técnica, o gênero
Há na relação entre cultura,
história e natureza uma questão fundamental que o marxismo propõe:
a forma como o ser humano produz e reproduz sua vida é essencial
para sua própria percepção do mundo. Desde as concepções
anímicas, que atribuíam a deuses representados pelas forças da
natureza os eventos naturais, e que foram deixando de prevalecer conforma se aprofundava nossa compreensão de como operam as forças naturais para criar tais eventos, nós mudamos muito nossa
concepção de mundo. É verdade que em determinado momento histórico
a divisão sexual do trabalho correspondeu a uma necessidade: a maior
força física que em geral os homens possuíam os tornavam mais
aptos à caça e a proteção; a capacidade de gestar e amamentar das
mulheres as tornavam mais aptas a cuidar da prole e das tarefas
correlatas. Mas hoje não caçamos, nem dependemos da força física
para sobreviver. Não é necessário, do ponto de vista físico, um
desgaste tão grande do corpo feminino para o parto ou o cuidado com
as crianças; claro que ainda existe essa questão, mas o nível de
socialização que podemos ter para todo tipo de tarefas que ainda
hoje são atribuídas socialmente às mulheres supera em muito a
visão ideológica estreita que perdura para os papéis de gênero.
Assim, conforme avança nosso domínio sobre as forças naturais e nossas técnicas de produção e reprodução da vida, torna-se cada vez mais nítido que a manutenção de papéis estritos
para homens e mulheres, para o patriarcado, as diferenças salariais,
os papéis no casamento, na aproximação sexual, no trabalho, no
cuidado com os filhos, na vida afetiva, enfim, em tudo, é muito mais
uma questão fundamental para a manutenção de nossa sociedade de
exploração e miséria do que uma necessidade material em que é
fundamental uma divisão do trabalho entre os sexos.
O mesmo podemos pensar em relação às características de nosso corpo. O desenvolvimento da medicina e da biologia tornam nosso controle sobre o próprio corpo muito mais preciso. Hoje é possível para uma pessoa trans - pelo menos do ponto de vista da técnica, pois o acesso a isso é uma questão política ainda muito mais atrasada - realizar intervenções em seu corpo para que esteja de acordo com sua identidade de gênero: cirurgias e TH (Terapia Hormonal) são apenas as mais conhecidas dessas intervenções. Hoje em dia estamos próximos inclusive da possibilidade da implantação de ovários e útero em mulheres trans.
A
luta por liberdade dessas amarras
Não se reconhecer no gênero que
lhe foi atribuído no seu nascimento, ou seja, ser uma pessoa
trans, se configura como uma afronta às necessidades do status quo de
manutenção dessa divisão estrita entre os papéis de gênero. Sexualidade (ser hetero, homo, bi, pan ou assexual) e gênero, ainda que
sejam questões com muitas particularidades e distinções
fundamentais, se permeiam enormemente nesse momento, pois o ódio e intolerância que ambas suscitam é justamente o de subverter essas regras estabelecidas
a ferro e a fogo em nossa sociedade sobre como entendemos nossa
identidade e nosso comportamento. As resistências para questionarmos
os papéis de sexualidade e gênero são imensas: não à toa que o
mesmo Freud que fez os questionamentos que colocamos acima
estabelecia o feminino como “o continente obscuro” da psicanálise e permanecia,
tanto em sua vida privada como na maior parte de suas concepções
teóricas, como um perfeito patriarca misógino representante de seu
gênero e sua classe social. Mesmo Simone de Bauvoir, que como mulher
tinha muito menos interesses na manutenção desses papéis e chegou
mesmo a desafiar padrões tão arraigados como o casamento
monogâmico, não pôde escapar de reproduzir em suas relações
amorosas muitos desses padrões sociais. Isso, longe de evidenciar
uma mera “hipocrisia” de questionadores como Freud ou Beauvoir,
explicita um fato fundamental que nunca podemos perder de vista:
ninguém pode ser livre sozinho. A ideia da liberdade individual é
uma das mais “marteladas” em nossa cabeça nessa sociedade
capitalista e liberal, e ela é um engodo feito para melhor nos
dominar.
Assim como a ideia de liberdade
individual, as amarras da sexualidade heteronormativa, do
patriarcado, da binariedade de gênero, são enfiadas goela abaixo
das crianças desde a gestação. A família, a escola, a igreja e o
estado são fábricas de neurose, porque enterram nossos desejos
subjetivos sob uma espessa camada de proibições e normas sociais.
As teorias procuram justificá-las de formas absurdas, como quando
Freud assenta sua teoria (para justificar seus próprios privilégios,
ainda que de forma inconsciente) sobre a ideia de que a repressão
sexual é a base da cultura e da civilização. A ciência e o conhecimento, que também para atingir melhor seus fins ideológicos querem se apresentar como "supraideológicos" ou "neutros" (coisa que não existe), sempre se prestaram ao papel de legitimar os papéis sociais, e isso não é uma exclusividade de Freud. O conceito de loucura, por exemplo, sempre serviu em maior ou menor grau como uma forma de controle social e político - em alguns momentos de forma muitíssimo explícita como na URSS stalinista ou nos EUA dos anos 1960. A própria psicanálise, ao lado da psiquiatria, tristemente continuam a cumprir papel semelhante em relação à transexualidade, classificando-a como uma doença, seja sob o rótulo de transexualismo, disforia de gênero, psicose ou qualquer outro termo ou conceito que seja, assim como haviam feito antes em relação à homossexualidade. Claro que, sejamos justos, nem todos os profissionais dessas áreas cumprem esse papel, e, aliás, são aliados de suma importância aqueles que combatem essa visão hegemônica. Também cabe a nós não sermos maniqueístas em nossas avaliações, e sabermos por onde reivindicar e onde combater cada discussão e concepção que se apresente, como é o caso de Freud, que em tantos aspectos ajudou a discussão sobre a sexualidade a dar passos colossais em relação ao pensamento hegemônico de sua época, apesar de suas noções conservadoras em outros aspectos.
Conforme vislumbramos que as coisas
não foram sempre assim, nem precisam ser, a luta por liberdade se
torna mais acirrada, mais sangrenta e mais explícita. Sempre
existiram pessoas intersexo, homossexuais, lésbicas, trans,
bissexuais. Mas às vezes as grades eram tão firmes e bem
construídas que eles sequer as viam, ou se viam não conseguiam
enfrentar seu poder de contenção. Era uma luta surda que se
desenvolvia de forma solitária e quase sempre invisível socialmente. Mas nem por isso menos mortal.
Quantos morreram com sua sexualidade guardada, ou se manifestando de
forma clandestina? Quantos assassinatos e suicídios estão nessa conta? Quantos procuraram em vão entender o que
acontecia consigo, mas sem poder se enxergar em qualquer lugar de
suas sociedades apenas amargaram uma dor impossível de se manifestar
como luta social. Quando olhamos para o lado e enxergamos
semelhantes, isso nos fortalece. Mas conforme saímos dos armários,
a violenta reação neurótica de uma sociedade explode contra nós.
Um exemplo disso é a triste estatística de que o Brasil é o país
que mais mata transexuais no mundo; e a estatística complementar
feita pelo site pornográfico RedTube de que é o país que mais
procura por vídeos pornográficos de travestis. A contradição aqui
é apenas aparente: o desejo sexual reprimido sob a forma da
binariedade e da heteronormatividade alimenta uma neurose que explode como violência, um sintoma social: matar o
outro é uma forma de tentar matar em si mesmo o desejo proibido.
Esse desejo pode se expressar apenas na clandestinidade da
pornografia, na solidão jamais confessa de assistir os outros
fazendo aquilo que você gostaria mais não pode. A liberdade de uma
travesti que anda na rua expressando aquilo que é e deseja ser, pisoteando a
clausura apertada da binariedade, é o que provoca a ira de um
transfóbico. A fobia é o medo, e o medo se expressa como ódio.
Ódio de quem é aquilo que você não ousa ser; medo de quem desafia
os padrões aos quais você se apega com tanto afinco. Padrões que
são muito mais frágeis do que parecem, e por isso mesmo precisam
ser defendidos com tanto ódio e violência, pois podem cair por
terra a qualquer momento. As histórias que mostram esse desejo
recalcado estão a todo momento aparecendo diante de nós:
ex-pastores que pregavam a “cura gay” de repente casam-se com um
homem; ou dois presos americanos, condenados por assassinatos
homofóbicos, e que recentemente tornaram-se o primeiro casal a oficializar um
matrimônio gay no sistema penitenciário americano.
Queimando
o armário
Escrever esse texto é, para mim, parte de
entender essas prisões e lutar contra elas. Mas não como
espectador, e sim como alguém que está se debatendo e tentando se
livrar de grilhões. Como disse em outro texto, desde pequeno não me
identifiquei jamais com o papel de gênero que me foi atribuído. Não
me sinto homem, pelo menos em uns 70% do que esperam de mim como
homem. Contudo, em uma sociedade como a nossa, não é somente a esse
tipo de comportamento que não me adequo. Não desejo nenhum desses
comportamentos. Nem me sinto como uma mulher, apesar de sempre ter,
de forma mais ou menos explícita, me identificado mais com diversas
questões do papel feminino do que do masculino. Mas esse último
período me fez refletir sobre uma concepção de transgeneridade que
estava muito arraigada em mim: a de que ela surge como algo
“natural”, no sentido de que é um afeto, um desejo, um impulso
incontrolável, e não algo que é também parte de uma construção consciente. Alguém designado como homem socialmente simplesmente
sente que não é, e torna isso uma afirmação diante do mundo; e
vice-versa. E na verdade muitas vezes as coisas acontecem assim, basta olharmos para as crianças trans, que antes de conseguirem escrever ou compreender ideias abstratas já têm perfeita compreensão de seu gênero, contrário àquele que lhe foi atribuído no nascimento. Mas isso não quer dizer que as coisas ocorrem sempre assim: as subjetividades caminham por formas muito diversas.
A pergunta que muitos têm me feito nesse período de investigação, eu também me fiz diversas vezes: não é muito
“racional” esse seu questionamento? Sim, ele é. Mas nem por isso
eu me sinto menos bonitx ou confortável quanto estou de vestido,
maquiagem, unhas pintadas. Nem por isso me sinto menos à vontade ou
identificado perto de mulheres do que de homens, e há muitos anos
todas minhas amigas íntimas são mulheres. Me sinto preso,
desconfortável, insultado até em situações masculinas, e me
desinteresso profundamente por assuntos e comportamentos masculinos
(como também por muitos femininos). O meu questionamento não
poderia deixar de ser racional, como todos são. Temos ainda um
vício, profundamente cartesiano e positivista, de separar as coisas
em racionais e emocionais. Isso é uma merda.
Eu sempre me senti
desconfortável e com ódio desse mundo; foi só um questionamento
racional, uma investigação teórica além de um comprometimento
militante e afetivo, que me fez entender que esse ódio tinha muito
mais vigor, sentido, profundidade quando recebeu o nome e a forma de comunismo, de marxismo. Penso em meu desconforto com
meu papel de gênero de maneira análoga: sempre me incomodou
profundamente; e pela primeira vez sinto encontrar algo que se
encaixa como uma luva nesse desconforto, que dá nome e sentido a
isso. É esse o lugar da transexualidade não-binária em minha
subjetividade: estou me encontrando ao não me identificar como
homem, nem como mulher. Sei que há algo de abstrato nisso, na medida
em que as pessoas – pelo menos do jeito que minha aparência física
é hoje – continuarão a me identificar como homem. Ler esse texto
me ajudou bastante a pensar sobre isso, assim como conversar com pessoas maravilhosas não-binárias que conheci. E sei que serei, como já
fui, hostilizado até mesmo por pessoas LGBT que, apesar de lutarem por liberdade, muitas vezes continuam, como todos nós, apegadas às suas caixinhas, às prisões nas quais
encontram segurança para afirmar sua identidade. Bom, mas é isso
que quis dizer quando afirmei que ninguém se torna livre sozinho; as
jaulas do gênero vão continuar me perseguindo, como continuam com
cada pessoa trans e mesmo com as cis desse mundo (esse texto fala bem sobre isso). Procuro o caminho
para a liberdade em uma luta contínua, que é subjetiva, e política,
e ao lado de pessoas que aprendo cada dia mais a amar, respeitar e
admirar profundamente. Ser tratado como louco é algo a que já me
habituei; e todos aqueles que buscam por liberdade em um mundo feito
de jaulas devem aprender que não há outro caminho.
sexta-feira, fevereiro 19, 2016
Você não pode usar vestido
Viado, bicha, menininha. Apelidos que recebia constantemente dos coleguinhas na minha escola do ensino fundamental, um reduto da pequena burguesia supostamente esclarecida de São Paulo. Comecei a receber apelidos assim lá pelos 12 anos, quando comecei a deixar o cabelo comprido. Acho que esse era o principal motivo, mas certamente meu comportamento destoante do modelo de masculinidade e do que esperavam de mim contribuía: não gostava de futebol nem esportes (exceto queimada), não era popular nem procurava ser, ficava no meu canto lendo livros. Era uma criança nerd.
Mais ou menos na mesma época passei a ser confundido com uma grande frequência com uma menina. Era uma idade em que a principal característica física distintiva entre os sexos é o cabelo, e eu havia escolhido ter o meu comprido. Nada de puberdade, de pelos no rosto, de voz grossa (essa não veio nunca) e muito menos de "atitudes de menino". Isso me incomodava, e eu não sabia o porquê. Depois fui entendendo. Não era porque era chamado de menina. Era porque aquilo vinha acompanhado de um deboche quando percebiam que eu não era. Era humilhante, eu me sentia mal. Contraditoriamente e, na verdade, complementarmente, fui adquirindo cada vez mais nojo de tudo aquilo que fui identificando como o comportamento masculino. Tinha amigos mais velhos, e me dava raiva e nojo ver alguns olhares e comentários sobre mulheres, tanto próximas quanto as que passavam na rua. Meus amigos mais próximos eram homens, mas de toda forma, estranhos.
Lembro um dia que comecei a me questionar sobre qual era o problema, afinal, de ser chamado de menina. Foi quando chegou uma professora nova, substituta, de Estudos Sociais (era assim que chamavam as aulas de história na minha escola). Ela tinha uma miopia bem grande, e estava lá em frente à sala. Eu levantei a mão para falar qualquer coisa. Ela me chamou de "princesa". As pessoas que alimentavam um ódio recíproco por mim imediatamente utilizaram aquilo pra me ridicularizar. Me senti humilhado. E com raiva dela.
Ela em poucos meses mudou muita coisa na minha cabeça. Ela viu que eu não me encaixava ali, e me ajudou a me descobrir. Me apresentou filmes como Easy Rider e livros como On the Road. Conversou comigo e me fez ver sentido em estudar as coisas que ensinava. Quando foi embora, ela era minha professora preferida. E me ajudou a ter orgulho de ser diferente. E a entender um pouco mais que não havia nada de ruim em ser chamado de menina. Ainda demorou um tempo pra que eu tivesse orgulho disso.
O tempo passou, eu cresci e parei de ser confundido com menina. As vezes que chamavam de "viado", "bixa" ou coisas do gênero também diminuíram. Me acostumei com a ideia de não gostar do comportamento "masculino", mas também aprendi que ele faz parte de todo um sistema social e um mundo do qual não gosto. E me decidi a lutar contra isso e tudo o que ele representa.
As questões de gênero e sexualidade fazem parte profunda e constante dessa luta. No país mais transfóbico do mundo, não tomar essa luta como causa fundamental é uma negligência imperdoável. Mas minha luta muda a minha vida também. E refletir mais profundamente sobre a trangeneridade, conviver com pessoas trans e, particularmente, conhecer o conceito de não binariedade foi criando coisas novas em mim. Quis, um dia, inocentemente me vestir de mulher. Como já havia feito em outras ocasiões, como festas à fantasia, aproveitei o carnaval para usar um vestido e maquiagem. Porque sim, em nossa moral hipócrita, há espaços onde se permite "se fantasiar" com roupas de homem e mulher livremente. Eu me senti bem, e me senti livre. Me senti bonitx. E o medo que sempre tive na minha infância de ser ridicularizado como gay ou mulher, que está presente no cotidiano de cada LGBT nesse mundo podre, eu pude deixá-lo um pouco de lado. Porque, sim, tenho medo. Tenho medo do julgamento dos outros sobre coisas que mal estou entendendo e experimentando. E fiquei feliz de poder experimentar, e de que tantas pessoas que amo simplesmente me acolheram tão prontamente. Foi o máximo.
Qual não foi minha surpresa ao compartilhar uma inocente postagem de uma garota criticando a proliferação de sabonetes íntimos femininos para impor uma suposta higiene às vaginas enquanto os pênis são "lindos e perfumados" naturalmente. Foi essa a postagem que compartilhei no facebook, e subitamente nos comentários começa uma enxurrada de hostilidade e insultos a mim. Disseram coisas como "Deixa de ser hipócrita passar um lapis de olho e se vestir como mulher não te autoriza a falar sobre essas questões", "Mano, para de assumir uma postura e de querer se apropriar de uma imagem e de um impacto que uma causa dessa tem...eu to é de saco cheio de ver vc pagando de mina quando é um burguês cis e HÉTERO", "Enquanto você se fantasia de mulher pra pagar de desconstruído, seu merda, minhas irmãs de luta estão sendo assassinadas nas esquinas." etc, etc, etc. Além disso, inventaram calúnias disparatadas contra mim, como a de que eu me passaria por uma mulher lésbica em aplicativos de celular para dar em cima de outras mulheres. Confesso que a enxurrada de comentários (feito por quatro pessoas) me abalou mais do que gostaria. Talvez porque já tive algum respeito e estima por duas delas, e ainda tinha por uma. Pessoas com quem já construi algo de militante, que a seu tempo foi importante. Por isso mesmo tentei, num primeiro momento, conversar e dialogar com seu ponto de vista. Mas não estavam ali para ouvir e falar, mas para hostilizar e humilhar, como quando na infância me chamavam de "viado" ou de "mulher". Mas agora não eram pessoas de classe média alta querendo me humilhar chamando-me de uma "minoria". Eram mulheres e um homem trans me chamando de oportunista e aproveitador por ser homem, branco, cis, hétero e querer me apropriar de uma luta alheia. Eu podia entender o que motivava aquilo, mas onde há calúnia e insultos dificilmente haverá um diálogo.
Eu não estava pagando de descontruído, pq não me desconstruo. Não sou um macho branco em desconstrução. Sou um ser humano em construção, permanente e cotidiana. Me esforço por me construir como revolucionário, nas grande e pequenas ações da minha vida. Isso passa por questionar cada valor que me ensinaram de machismo, homofobia e racismo, sim. Mas o essencial não é o que "desconstruo", mas o que faço do lugar em que nasci e do que vou fazendo de minhas ações e minhas escolhas. Me esforço para construir uma identidade diante do mundo. Ela é cis e hétero? Assim me encaixaram e eu me encaixei até então. Uma das pessoas, pensando talvez mais com a própria cabeça do que com os dogmas que querem classificar um outro (branco, hétero, cis) como o inimigo, comentou na publicação de sua amiga: e existe alguém puramente cis e hétero? Eu acho que as identidades de gênero e de sexualidade têm um propósito: resistir e lutar em um mundo em que se oprime e se explora. Mas seu propósito é esse. Quando se tornam camisas de força, prisões e rótulos, estão cumprindo um papel nefasto. O mundo em que defendo é um onde quem quiser usa a roupa que quiser, se identifica como quiser, transa com quem quiser. Um mundo de liberdade. Hoje nos organizamos para lutar e resistir. Minha identidade não é fixa e não é uma prisão. Quando e se uso vestidos ou qualquer roupa, é porque quero e me sinto bem daquele jeito. Em que momento nossa luta por resistência passou a ser uma competição de quem é mais o quê? De quem luta mais ou é mais oprimido? A quem eu preciso provar o que para que eu possa me vestir como me dê vontade? "Você é cis, não pode usar vestido". Sério? É pra isso que lutamos? Achei que um vestido era só uma peça de roupa, e que qualquer um deveria poder usar ou não usar a roupa que bem entenda. Mas não, segundo me disseram hoje, eu, homem, branco, hétero e cis, não posso usar um vestido, não posso pintar as unhas, não posso me maquiar. Como quando eu era pequeno não podia ter o cabelo comprido, pois isso era coisa de "viado". Um dia, quando criança, me enchi dessas provocações e simplesmente disse: E se sou gay, qual o problema? E dei um beijo no rosto de um amigo. Foi quando já tinha aprendido a ter orgulho de ser diferente daquela gente, e que o que eu realmente não tinha eram seus preconceitos.
Fico imaginando onde que essa gente acha que essa patrulha de gênero, vestimenta, sexualidade fortalece qualquer luta. Penso em gente que admiro, como a Laerte, que com seus cinquenta e tantos anos resolve assumir sua identidade de gênero feminina. Talvez essa gente que hoje me hostilizou fizesse uma inquisição se estivesse lá por perto no momento: "Ei, você, homem, branco, cis, hétero, classe média. Quem pensa que é para de um dia pro outro resolver usar vestidos? Resolver dizer que é mulher? Você quer roubar o protagonismo dos outros, quer se apropriar da luta alheia."
Laerte sabe mais, e resolveu fazer o que quis com seu corpo e sua identidade quando bem quis. E eu, se quero usar vestidos, uso. Não estou roubando luta de ninguém, mesmo porque luta não se rouba. Eu tenho é muitíssimo orgulho de estar ao lado dxs trans, dxs pretos, das mulheres, dxs indígenas na luta contra a opressão e exploração. E se hoje sou hétero, amanhã posso não ser; se hoje sou cis, amanhã posso não ser. E não devo satisfação alguma a essa ridícula polícia "militante de facebook" de sexualidade e gênero. Quem dera essa gente estivesse amanhã na linha de frente das lutas contra esse mundo podre que quer nos enquadrar em suas caixinhas limitadas, ao invés de estar em seus comentários de facebook querendo nos enquadrar também nas caixinhas e nos proibir de usar uma roupa ou passar uma maquiagem.
Estou com a Rosa, quando ela diz "Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e completamente livres." Essa é a minha bandeira, e ela eu não roubei de ninguém.
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