Às vezes parece mesmo que nunca acaba de caber mais dor no coração.
E que mundo maldito é esse que nos deixa, depois de uma vida de luta, de superação, de persistência, que nos deixa largados no canto, acuados, sem ver saída em nenhuma parte.
Esse mundo nos tirou ontem a Márcia Melo. Nesse meu ano, a segunda pessoa que eu estimava e que tirou sua própria vida. No ano de uma de suas amigas mais próximas, também foi a segunda pessoa. Nesse mundo que cerca a gente de miséria por tudo o que é lado, foi mais uma entre milhares.
Essa distância e impotência sempre calam fundo no peito. A última vez que falei com a Márcia faz uns dois anos. Ela era uma pessoa especial. Quando a conheci, tinha dezenove anos. E foi uma das pessoas que, com uma sensibilidade, inteligência e percepção raras, me deu um pouco do que eu precisava para ser gente.
Márcia teve que virar gente grande cedo. Com catorze anos saiu de casa para enfrentar o mundo. Casou, teve filha, separou, criou a filha, casou de novo, teve filha, enviuvou, criou a filha. Na unha. Na raça. Sem ajuda do estado, sem ajuda dos homens, sem ajuda desse mundo.
Lembro das conversas, café e cigarro. Lembro, tudo em perspectiva nova, das brigas com a filha mais nova. Que mundo cão. Que uma mulher incrível como essa se encontre nesse beco escuro, que tome a decisão mais dura. Que nos deixe, assim. Eu, mais uma vez, fiquei aqui sem poder dar um adeus. Sem poder ter dito a Márcia que, apesar da distância, apesar da dureza do mundo, apesar da minha inabilidade tão humana em estar perto, eu a amava. Apesar de nunca ter lhe dito, que pedaço tão grande de sua influência mora em mim.
Ela me encorajou, desde sempre, a procurar meu próprio caminho. Ela procurou; lutou, sofreu, perseverou: ela fez por onde para achar o seu caminho. Há quem vá dizer com desdém, como sempre, que ela fugiu. Há quem vá dizer de lado, que nada tem com isso. É desse tipo de hipocrisia, de indiferença mórbida, de insensibilidade obtusa, que são feitas as dores do mundo. Esse mundo podre se regozija ao nos ver passando por alto o que tomba ao nosso lado.
Há uns cinco ou seis anos, eu, jovem e despreparado para qualquer coisa, conversei com a Márcia quando ela se postava à beira do precipício e olhava, pensando no salto. Não sei que diferença fiz pra ela naquele momento; mas sei que ela não pulou, e que aquilo foi uma das marcas profundas que ela deixou em mim. Não sabia que o suicídio seria uma ferida tão longitudinal e perene na minha vida, sempre me colocando frente à dor desse mundo. Já intuía a sabedoria sofrida que se escondia naquela mulher tão jovem, tão velha, tão cansada, tão dura.
Onde o caminho de Márcia a levou? No que dependeu dela, sei que cada passo foi batalhado e valeu. Mas o peso desse mundo é demais para uma mulher, independentemente do quão incrível e forte possa ser, carregar sozinha nas costas. Essa morte é mais uma dor que carrego comigo. Que sei que há mulheres que levam em sua luta a inspiração desse combate duro, árido, mas sem trégua e vacilação, que foi a vida da Márcia. Nós a colocamos na conta de todo esse sofrimento, e não vamos perdoar ou esquecer. Nem vamos deixar de amar o que você foi para nós, mesmo que só nesses breves intervalos que conseguimos furar o cerco dessa lama que nos cobre.
E, nas últimas vezes que conversamos, foi sobre as lutas de 2013. Márcia se entusiasmou, sentiu a vida fluir com a tomada das ruas. Se separou de amigos, conservadores, espumantes raivosos. Ela estava ao lado da vida, da juventude, da luta. Nos aproximamos novamente com isso, e a força dela era mais uma vez uma inspiração, dessa vez no calor da luta. Sua morte é a contracara disso. É o sinal, paradoxal, de que Márcia não se resignaria a ser uma velha abandonada no canto, tratada como louca, tratada como quem não sabe do que a vida é feita. Ela não se resignou, mas não viu outra saída. É essa saída que temos que procurar; a saída desse beco escuro, desse mundo torpe.
segunda-feira, novembro 16, 2015
terça-feira, agosto 25, 2015
jazida
Ansiedade bruta, dura angústia no gargalo da vida
desse escombro de passado
desejo renhido recalcado
a ruína daquele rosto, decomposto
o gosto amargo de não aspirar
à vida, a essa pulsão entranhada
voltada para dentro dessa caverna escura
desse ventre não me sai nada
é seco, cinza,
recua
uma esperança natimorta
um grito sufocado, surdo,
garganta cortada por onde vaza o ar sem virar voz, sem virar
som
não há onda nessa costa, a margem ressecada
nenhuma lembrança escapa desse cemitério de desejos
nenhuma esperança se alimenta dessa matéria inorgânica
terça-feira, junho 23, 2015
Helena
Nunca aproveitamos como deveríamos a presença das pessoas que amamos, que admiramos, que nos inspiram e nos movem. Esse gosto amargo que fica, já aprendi na prática, é inevitável quando estamos diante da morte de alguém que ocupa esse lugar para nós. Não só isso, mas também o sentimento dilacerante da impotência, o reduzido tamanho e poder de qualquer de nossas ações diante da inevitável e incontornável morte.
Há tudo isso no luto, na dor da perda e da separação. Mas há algo de diferente na dor de uma separação como a que estou vivendo agora, uma sensação que surge da particularidade dessa relação, que é a relação entre analista e analisando. Foram cinco anos em que vivi essa relação; cinco dos mais intensos, duros, fundamentais. Cinco anos em que transformei muita coisa em mim mesmo. Mudanças que simplesmente não consigo imaginar sem minha relação com essa pessoa, que em cada passo e hesitação me ajudou a contemplar o que há de mais esquivo e secreto dentro de mim, nos meus desejos, no meu inconsciente.
Eu conhecia muito Helena, pela mudança profunda que ajudou a operar em mim, pela dedicação e habilidade com que exercia seu difícil e desafiador trabalho. Pela sua perspicácia e sensibilidade. Mas não conhecia Helena em absoluto, pois não sei de seus gostos, seus hábitos, seus ódios e amores, as pequenas coisas de seu dia-a-dia. Poderíamos ter sido amigos, fosse o nosso encontro em diferentes circunstâncias, e talvez eu a conhecesse e não-conhecesse ao contrário. Mas nosso encontro foi na investigação analítica, espaço no qual é o paciente que tem a centralidade, e o analista encontra-se em um papel de ajudante na investigação psíquica. Ele está nos bastidores, opera as câmeras, os cenários, a iluminação. Faz o espetáculo acontecer, mas fora da cena. Em termos ideias, Freud disse que "O médico [leia-se, analista] deve ser opaco para o analisando, e, tal como um espelho, não mostrar senão o que lhe é mostrado".
Isso é apenas uma imagem, pois pessoas-espelho e pessoas-opacas não existem, e nem seria o analista bem sucedido em seu trabalho se apenas refletisse o que lhe é dito, se não conduzisse e instigasse. As décadas de estudo, dedicação, prática e conhecimento que antecederam meu encontro com Helena deram-lhe a capacidade admirável de ver, por vezes nas palavras mais aparentemente insignificantes, o sentido profundo de minha subjetividade. E, com firmeza e suavidade, conduzir e andar ao lado, sendo a companheira dessa descoberta do que sou. Calar-se e ouvir atentamente; falar, questionar e desafiar quando necessário. Descobrir junto a mim.
A caminhada se faz a dois, e não há nada "neutro" em uma relação analista-analisando. É uma combinação entre duas pessoas, e, como tal, não pode existir outra como aquela. Certa vez, quando eu conversava com Helena sobre essa relação, e sobre o critério para uma pessoa encontrar um "bom analista", ela me ilustrou essa relação com a metáfora de um relacionamento amoroso. O analista não vai ser bom para alguém "apenas" porque é inteligente, experiente, culto, perspicaz; nem será ruim "apenas" porque é novato, inseguro, hesitante. Há uma afinidade, uma empatia, que é fundamental para que se construa a relação, para que ela seja bem sucedida e se solidifique, que traga seus frutos. Cada processo de análise é, portanto, único.
A minha relação com Helena era muito bem sucedida. E, se, por um lado, me dói não ter feito parte de sua "vida pessoal", me faz falta ter lhe dado um abraço e lhe dito um sincero "obrigado" antes que ela partisse, por outro sei que fiz parte do mais profundo do que essa excepcional mulher foi. Acredito, tal como Marx, que o que há de mais propriamente humano é o trabalho: por meio dele alteramos a realidade, interferimos no mundo, mudamos nossa consciência e nossas condições de vida. Helena dedicou sua vida ao trabalho de analista, no qual se tornou excelente. Eu dividi esse, e nenhum outro, aspecto de sua vida: o seu trabalho, sua característica mais profundamente humana. Sua dedicação e seu amor pelo que fazia podem ser medidos por esse cuidado: quatro dias antes de sua morte, ela se dedicou a sentar com uma grande amiga e colega e lhe passar os contatos de seus pacientes, e uma indicação escolhida a dedo de alguém que poderia continuar (mais correto seria dizer "iniciar um novo") trabalho de análise com esses seus "órfãos". Era esse o tamanho da centralidade, da dedicação, que Helena tinha com seu trabalho. E o que sou hoje, é, também, o resultado de seu trabalho.
Por isso, por mais que não conheça a família, os filhos, os detalhes de Helena, posso dizer que me relacionei com ela de forma tão profunda como ela se relacionou comigo; ela, que sabia tantos detalhes íntimos de minha vida, de meu passado, de meus desejos, como talvez nenhuma outra pessoa saiba. Sua morte me dilacera, mais uma vez. É um pedaço arrancado de mim, um luto que, passados poucos dias de sua morte, mal comecei a fazer. Diante dessa dor tão abrangente e multidimensional, dessa tarefa imensa e angustiante da separação, uma coisa me consola: a transformação que o trabalho dedicado, persistente e paciente de Helena ajudou a operar em mim é uma herança profunda que carrego dela. Ou seja, aquilo que sou e que posso fazer é a marca que, através de mim, ela deixa no mundo. Assim como será com seus demais pacientes. Ela foi a pessoa que efetivamente me mostrou, passando por cima de tantos e tão arraigados preconceitos, o potencial transformador da psicanálise. E me ajudou também a conhecer, na prática, que é necessário, enfim, muito mais do que dogmas, fórmulas prontas e esquemas prontos para ser subversivo, transformador, revolucionário. Ela morreu serena, sóbria, consciente. Espero, da mesma forma, seguir adiante com o que levo de sua intervenção nesse mundo.
Há tudo isso no luto, na dor da perda e da separação. Mas há algo de diferente na dor de uma separação como a que estou vivendo agora, uma sensação que surge da particularidade dessa relação, que é a relação entre analista e analisando. Foram cinco anos em que vivi essa relação; cinco dos mais intensos, duros, fundamentais. Cinco anos em que transformei muita coisa em mim mesmo. Mudanças que simplesmente não consigo imaginar sem minha relação com essa pessoa, que em cada passo e hesitação me ajudou a contemplar o que há de mais esquivo e secreto dentro de mim, nos meus desejos, no meu inconsciente.
Eu conhecia muito Helena, pela mudança profunda que ajudou a operar em mim, pela dedicação e habilidade com que exercia seu difícil e desafiador trabalho. Pela sua perspicácia e sensibilidade. Mas não conhecia Helena em absoluto, pois não sei de seus gostos, seus hábitos, seus ódios e amores, as pequenas coisas de seu dia-a-dia. Poderíamos ter sido amigos, fosse o nosso encontro em diferentes circunstâncias, e talvez eu a conhecesse e não-conhecesse ao contrário. Mas nosso encontro foi na investigação analítica, espaço no qual é o paciente que tem a centralidade, e o analista encontra-se em um papel de ajudante na investigação psíquica. Ele está nos bastidores, opera as câmeras, os cenários, a iluminação. Faz o espetáculo acontecer, mas fora da cena. Em termos ideias, Freud disse que "O médico [leia-se, analista] deve ser opaco para o analisando, e, tal como um espelho, não mostrar senão o que lhe é mostrado".
Isso é apenas uma imagem, pois pessoas-espelho e pessoas-opacas não existem, e nem seria o analista bem sucedido em seu trabalho se apenas refletisse o que lhe é dito, se não conduzisse e instigasse. As décadas de estudo, dedicação, prática e conhecimento que antecederam meu encontro com Helena deram-lhe a capacidade admirável de ver, por vezes nas palavras mais aparentemente insignificantes, o sentido profundo de minha subjetividade. E, com firmeza e suavidade, conduzir e andar ao lado, sendo a companheira dessa descoberta do que sou. Calar-se e ouvir atentamente; falar, questionar e desafiar quando necessário. Descobrir junto a mim.
A caminhada se faz a dois, e não há nada "neutro" em uma relação analista-analisando. É uma combinação entre duas pessoas, e, como tal, não pode existir outra como aquela. Certa vez, quando eu conversava com Helena sobre essa relação, e sobre o critério para uma pessoa encontrar um "bom analista", ela me ilustrou essa relação com a metáfora de um relacionamento amoroso. O analista não vai ser bom para alguém "apenas" porque é inteligente, experiente, culto, perspicaz; nem será ruim "apenas" porque é novato, inseguro, hesitante. Há uma afinidade, uma empatia, que é fundamental para que se construa a relação, para que ela seja bem sucedida e se solidifique, que traga seus frutos. Cada processo de análise é, portanto, único.
A minha relação com Helena era muito bem sucedida. E, se, por um lado, me dói não ter feito parte de sua "vida pessoal", me faz falta ter lhe dado um abraço e lhe dito um sincero "obrigado" antes que ela partisse, por outro sei que fiz parte do mais profundo do que essa excepcional mulher foi. Acredito, tal como Marx, que o que há de mais propriamente humano é o trabalho: por meio dele alteramos a realidade, interferimos no mundo, mudamos nossa consciência e nossas condições de vida. Helena dedicou sua vida ao trabalho de analista, no qual se tornou excelente. Eu dividi esse, e nenhum outro, aspecto de sua vida: o seu trabalho, sua característica mais profundamente humana. Sua dedicação e seu amor pelo que fazia podem ser medidos por esse cuidado: quatro dias antes de sua morte, ela se dedicou a sentar com uma grande amiga e colega e lhe passar os contatos de seus pacientes, e uma indicação escolhida a dedo de alguém que poderia continuar (mais correto seria dizer "iniciar um novo") trabalho de análise com esses seus "órfãos". Era esse o tamanho da centralidade, da dedicação, que Helena tinha com seu trabalho. E o que sou hoje, é, também, o resultado de seu trabalho.
Por isso, por mais que não conheça a família, os filhos, os detalhes de Helena, posso dizer que me relacionei com ela de forma tão profunda como ela se relacionou comigo; ela, que sabia tantos detalhes íntimos de minha vida, de meu passado, de meus desejos, como talvez nenhuma outra pessoa saiba. Sua morte me dilacera, mais uma vez. É um pedaço arrancado de mim, um luto que, passados poucos dias de sua morte, mal comecei a fazer. Diante dessa dor tão abrangente e multidimensional, dessa tarefa imensa e angustiante da separação, uma coisa me consola: a transformação que o trabalho dedicado, persistente e paciente de Helena ajudou a operar em mim é uma herança profunda que carrego dela. Ou seja, aquilo que sou e que posso fazer é a marca que, através de mim, ela deixa no mundo. Assim como será com seus demais pacientes. Ela foi a pessoa que efetivamente me mostrou, passando por cima de tantos e tão arraigados preconceitos, o potencial transformador da psicanálise. E me ajudou também a conhecer, na prática, que é necessário, enfim, muito mais do que dogmas, fórmulas prontas e esquemas prontos para ser subversivo, transformador, revolucionário. Ela morreu serena, sóbria, consciente. Espero, da mesma forma, seguir adiante com o que levo de sua intervenção nesse mundo.
quarta-feira, abril 15, 2015
A morte à espreita - Algumas se ganha, algumas se perde
Ligo o celular, que ficou uma hora carregando enquanto estava na análise.
Uma hora em cinco mensagens.
17:03 - Pards.
17:38 - Preciso de ajuda!
17:39 - Tô em completo desespero!
18:04 - Adeus Pards!
18:05 - Eu te amo!
Primeira coisa. Olho em volta, procuro táxis, na mão incerta o telefone disca. Besteira, seis da tarde o táxi demora mais nas ruas entupidas, corro pro ponto, entro no ônibus espremido. Consegui o primeiro contato ainda na rua. A voz, pastosa, chorosa, me atende.
O que você fez?
Tomei uns comprimidos.
Quantos?
Não te escuto, não te escuto. A ligação cai. A mão no bolso procura o bilhete único, a mochila grande atrapalha enquanto me espremo deseducadamente entre as pessoas, sem me importar. Caixa postal, passo o bilhete no leitor, rediscando. Chama. Alô? Quantos você tomou? Não te escuto, cai. Mensagens.
18:10 - Vem aqui em casa.
18:10 - Não to te ouvindo.
18:15 - Já tem gente vindo.
18:15 - Obrigado!
Ligo de novo. Ela quer despistar. Quem está indo? Estou indo também. Deixa a porta aberta. Me espremo grosseiramente, o ônibus dispara pelo corredor. Ligo pro meu irmão, psiquiatra, repetidas vezes. Nada. É muito devagar. Tudo é devagar. Estou calmo, na verdade. Só é devagar. A minha vida me preparou para estar calmo agora. Foi um bom preparo, e sei que dessa vez é só fazer tudo certo. Entre um ponto e outro, uma corrida. Entro no segundo ônibus. Devem ser uns quinze, vinte minutos até o portão. Está aberto, discretamente destrancado. Ótimo. Ótimo sinal.
Encontro ela no chuveiro, a cara grogue, sentada sob a água que cai. Fecho a torneira, estendo a toalha. Se seca, se veste. Procuro táxi, ligo, falo com os outros que estão vindo. Consigo um carro emprestado. Vamos. São mais uns vinte minutos. Falo com meu irmão, ele tranquiliza: não é algo que cada minuto conta. Tudo bem, já sabia, mas sempre é bom ouvir o que já sabemos nessas horas; ouvir dez vezes. Minha cabeça, no fundo, já está preocupada com o amanhã. Tirar os comprimidos é a parte mais fácil. Vamos. Cerca de uma hora após as mensagens, ela está na sala para expelir os comprimidos.
Já posso sentar. Chorar. Consegui; conseguimos. Ela vai viver. Por quanto tempo? Eu não sei ainda, mas essa noite ela vai viver. A dor daquele dia, há exatos três anos, volta sobre meu corpo tenso. Os fantasmas adormecidos me voltam. Os tempos se misturam. Nessa tarde ela me pediu para ir com ela ao médico; eu não pude, não tive tempo. Não fui só eu, mais um e mais outro não puderam. Estava tudo bem naquela hora, mas de repente veio o desespero. As mensagens vieram, o desespero de quem ainda acredita que é possível vencer a si mesmo e um arroubo de desesperança, de dor lancinante. A vida, escondida, clama. Vimos, corremos, chegamos. Três anos antes, ela havia me chamado também. Eu não pude, eu dei bolo, eu dei um cano, eu não fui. Eu recebi mensagens, duras, ásperas. Egoísta, era do que ela me chamou. Me doeu, como sempre. Melhor conversar depois, com calma. Não sabia: não tinha depois. Eu não estava lá. Não teve conversa. Não teve ajuda. A ambulância, o pai, tentaram levar ela. Mas naquela vez não era a primeira, tinha experiência e decisão. Aquele momento se tornou tudo, e não teria o arrependimento. Teria a morte. O arrependimento, se houvesse, não era mais dela. Ela dormia, pela primeira vez sem os pesadelos, nenhum deles.
Foram cerca de dez horas naquela noite, antes que ela pudesse acordar e dizer que não conseguia acreditar que tinha feito aquilo. Ela queria. Queria querer viver. Quantas vezes me "confortei" pensando que a morte estava à espreita? Que se naquela noite estivesse lá, que se tivesse conseguido impedir, que a morte estava à espreita, ainda; imensa, onipotente, iniludível, inevitável. As suas duras palavras ressoavam. Os gestos, as músicas que deixou, o silêncio. A morte venceu, dessa vez. Foram vinte e seis anos até seu triunfo; decisivo, derradeiro. E agora? O que vencia era a vida? Uma prorrogação? Uma chance, um intervalo, uma vida. A morte, à espreita, naquela enfermaria, naquele mundo sórdido. A morte, sobre cada um e todos, e sempre. Nesse mundo, que é feito mais de morte que de vida.
Penso agora no hospital, imaginário, ela acordando. Seria diferente. Uma alegria amaríssima. Pois seria, sem uma triste sombra de dúvida, acompanhada da frustração de seu olhar. "Mais uma vez não consegui", seria o gosto de seu despertar. De quem seria a alegria? Seria talvez, uma alegria egoísta de quem quer manter alguém aqui "apesar de tudo"? A morte estava à espreita já há tempo demais. Tempo demais para que pudéssemos vencer de verdade. O corpo, ele pode ser mantido por anos, décadas. Mas é preciso acreditar que ainda é possível querer viver. Que é possível derrotar os pesadelos, as vozes, as angustias, as tristezas. O peso a esmagar. Por isso, fui solidário. Por isso que disse que não há egoísmo em partir. Por isso, talvez, o preço da alegria nesse hospital - essa alegria que nunca tivemos - fosse grande demais para se pagar. A alegria só é verdadeira quando pode, ainda que posteriormente, ser compartilhada com alguém ainda capaz de olhar para trás e dizer: ainda bem que não consegui. Do contrário, a morte venceu mais uma vez. Seria vida? Seria a luta cotidiana, como todas as outras, apenas com a morte à espreita?
A morte está à espreita, ainda, e sempre. Nessa tarde, poderíamos ter perdido. Mesmo com chances bem melhores de ganharmos, no jogo sempre há o acaso. E poderíamos ter perdido. Vencemos, mas é uma vitória efêmera se não conseguimos seguir lutando, uma vez e sempre. Não pelo corpo, mas pelo espírito. Não por um, mas por todos. Pela ideia, para que ela seja verdadeira, de que, apesar de hoje, apesar de tudo, é possível. É possível querer viver. Não há dia que não se trave essa luta.
Uma hora em cinco mensagens.
17:03 - Pards.
17:38 - Preciso de ajuda!
17:39 - Tô em completo desespero!
18:04 - Adeus Pards!
18:05 - Eu te amo!
Primeira coisa. Olho em volta, procuro táxis, na mão incerta o telefone disca. Besteira, seis da tarde o táxi demora mais nas ruas entupidas, corro pro ponto, entro no ônibus espremido. Consegui o primeiro contato ainda na rua. A voz, pastosa, chorosa, me atende.
O que você fez?
Tomei uns comprimidos.
Quantos?
Não te escuto, não te escuto. A ligação cai. A mão no bolso procura o bilhete único, a mochila grande atrapalha enquanto me espremo deseducadamente entre as pessoas, sem me importar. Caixa postal, passo o bilhete no leitor, rediscando. Chama. Alô? Quantos você tomou? Não te escuto, cai. Mensagens.
18:10 - Vem aqui em casa.
18:10 - Não to te ouvindo.
18:15 - Já tem gente vindo.
18:15 - Obrigado!
Ligo de novo. Ela quer despistar. Quem está indo? Estou indo também. Deixa a porta aberta. Me espremo grosseiramente, o ônibus dispara pelo corredor. Ligo pro meu irmão, psiquiatra, repetidas vezes. Nada. É muito devagar. Tudo é devagar. Estou calmo, na verdade. Só é devagar. A minha vida me preparou para estar calmo agora. Foi um bom preparo, e sei que dessa vez é só fazer tudo certo. Entre um ponto e outro, uma corrida. Entro no segundo ônibus. Devem ser uns quinze, vinte minutos até o portão. Está aberto, discretamente destrancado. Ótimo. Ótimo sinal.
Encontro ela no chuveiro, a cara grogue, sentada sob a água que cai. Fecho a torneira, estendo a toalha. Se seca, se veste. Procuro táxi, ligo, falo com os outros que estão vindo. Consigo um carro emprestado. Vamos. São mais uns vinte minutos. Falo com meu irmão, ele tranquiliza: não é algo que cada minuto conta. Tudo bem, já sabia, mas sempre é bom ouvir o que já sabemos nessas horas; ouvir dez vezes. Minha cabeça, no fundo, já está preocupada com o amanhã. Tirar os comprimidos é a parte mais fácil. Vamos. Cerca de uma hora após as mensagens, ela está na sala para expelir os comprimidos.
Já posso sentar. Chorar. Consegui; conseguimos. Ela vai viver. Por quanto tempo? Eu não sei ainda, mas essa noite ela vai viver. A dor daquele dia, há exatos três anos, volta sobre meu corpo tenso. Os fantasmas adormecidos me voltam. Os tempos se misturam. Nessa tarde ela me pediu para ir com ela ao médico; eu não pude, não tive tempo. Não fui só eu, mais um e mais outro não puderam. Estava tudo bem naquela hora, mas de repente veio o desespero. As mensagens vieram, o desespero de quem ainda acredita que é possível vencer a si mesmo e um arroubo de desesperança, de dor lancinante. A vida, escondida, clama. Vimos, corremos, chegamos. Três anos antes, ela havia me chamado também. Eu não pude, eu dei bolo, eu dei um cano, eu não fui. Eu recebi mensagens, duras, ásperas. Egoísta, era do que ela me chamou. Me doeu, como sempre. Melhor conversar depois, com calma. Não sabia: não tinha depois. Eu não estava lá. Não teve conversa. Não teve ajuda. A ambulância, o pai, tentaram levar ela. Mas naquela vez não era a primeira, tinha experiência e decisão. Aquele momento se tornou tudo, e não teria o arrependimento. Teria a morte. O arrependimento, se houvesse, não era mais dela. Ela dormia, pela primeira vez sem os pesadelos, nenhum deles.
Foram cerca de dez horas naquela noite, antes que ela pudesse acordar e dizer que não conseguia acreditar que tinha feito aquilo. Ela queria. Queria querer viver. Quantas vezes me "confortei" pensando que a morte estava à espreita? Que se naquela noite estivesse lá, que se tivesse conseguido impedir, que a morte estava à espreita, ainda; imensa, onipotente, iniludível, inevitável. As suas duras palavras ressoavam. Os gestos, as músicas que deixou, o silêncio. A morte venceu, dessa vez. Foram vinte e seis anos até seu triunfo; decisivo, derradeiro. E agora? O que vencia era a vida? Uma prorrogação? Uma chance, um intervalo, uma vida. A morte, à espreita, naquela enfermaria, naquele mundo sórdido. A morte, sobre cada um e todos, e sempre. Nesse mundo, que é feito mais de morte que de vida.
Penso agora no hospital, imaginário, ela acordando. Seria diferente. Uma alegria amaríssima. Pois seria, sem uma triste sombra de dúvida, acompanhada da frustração de seu olhar. "Mais uma vez não consegui", seria o gosto de seu despertar. De quem seria a alegria? Seria talvez, uma alegria egoísta de quem quer manter alguém aqui "apesar de tudo"? A morte estava à espreita já há tempo demais. Tempo demais para que pudéssemos vencer de verdade. O corpo, ele pode ser mantido por anos, décadas. Mas é preciso acreditar que ainda é possível querer viver. Que é possível derrotar os pesadelos, as vozes, as angustias, as tristezas. O peso a esmagar. Por isso, fui solidário. Por isso que disse que não há egoísmo em partir. Por isso, talvez, o preço da alegria nesse hospital - essa alegria que nunca tivemos - fosse grande demais para se pagar. A alegria só é verdadeira quando pode, ainda que posteriormente, ser compartilhada com alguém ainda capaz de olhar para trás e dizer: ainda bem que não consegui. Do contrário, a morte venceu mais uma vez. Seria vida? Seria a luta cotidiana, como todas as outras, apenas com a morte à espreita?
A morte está à espreita, ainda, e sempre. Nessa tarde, poderíamos ter perdido. Mesmo com chances bem melhores de ganharmos, no jogo sempre há o acaso. E poderíamos ter perdido. Vencemos, mas é uma vitória efêmera se não conseguimos seguir lutando, uma vez e sempre. Não pelo corpo, mas pelo espírito. Não por um, mas por todos. Pela ideia, para que ela seja verdadeira, de que, apesar de hoje, apesar de tudo, é possível. É possível querer viver. Não há dia que não se trave essa luta.
terça-feira, abril 14, 2015
quarta-feira, abril 08, 2015
Aprender a separação
Três anos se passaram.
Eu perdi cabelo, ganhei peso, terminei o mestrado, mudei de casa, mudei de emprego, comecei a estudar psicanálise, terminei relacionamentos, comecei relacionamentos, parei de tomar remédios, mudei, fiquei o mesmo.
Você não.
Continua cristalizada, eternizada há três anos atrás. Sua carne desfeita, roída por vermes, seu rosto a existir naquelas memórias, as poucas, as persistentes. Seus sonhos, parados, estáticos, por serem sonhados. O tempo não passa mais.
Em três anos continuo a te sonhar, a te chorar. Você continua a ser minha dor, secreta, que diuturnamente me pega a contragolpe, me volta aguda, no nervo, num relance. Num cabelo cacheado, num cheiro, num livro, num filme, num sorriso de alguém novo, num soprar de fumaça. Num desafio a ser feito.
Porra. Queria te contar as novidades... não dá. Não tem mais novidades para você. Você ficaria feliz com elas, eu sei. Com sua voz meio estridente, seu jeito atrapalhado de falar, quantas críticas boas já teriam escapado de sua boca; quantas vezes teria se animado, apesar de tudo, e teria tomado a frente de novo. Aqueles momentos que faziam tudo valer a pena. Sei que eles ficaram ofuscados para você, mas sei também como eles existiam, eram muitos, e o quanto me alegro de ter compartilhado uma porção deles com você. Penso no que estaria fazendo. Estaria ainda na USP? No México? Estudando psicanálise comigo, aprofundando nossa parceria tão forte?
Em cada conquista, em cada passo adiante, você falta. E está lá. Ainda é quem me dá força pra tomar a batalha em dois fronts, no político e no psíquico. Continuo dando a luta que aprendi com você, carregando um sonho que tivemos juntos. Queria ser quadridimensional como um Dr. Manhattan, para poder voltar, tocar seus cachos, seu rosto, suas cicatrizes. Sentir você uma vez mais. Te dizer esse "obrigado" eternamente entalado na minha garganta.
Que merda. Essa dor aqui, indissoluta, indissolúvel, que se mistura aos poucos nesses anos que vão vindo, que vão trazendo uma montanha de coisas, coisas que se acumulam, por cima das velhas memórias, por cima, por cima do que sinto. Do que te sinto. Dessa dor, desse sonho, basilar, subjacente a tudo o que sou e que existe para mim. Esse sonho interrompido, como um suspiro, que, afinal, é do que a vida - não só a sua - é feita, sempre. Esse suspiro entrecortado, abafado pelo ruído de um mundo que nos interrompe.
Lembro que tinha medo de te esquecer. Medo desse futuro tão grande sem você. É horrível pensar que o tempo que decorreu desde que você foi embora é já maior do que o tempo que passei contigo. O tempo que passei com sua ausência é maior que o tempo ao seu lado. Já não consigo mais nem parar um pouco e remoer o passado. Esse luto inconcluso, esse luto permanente.
Esses anos, cada dia, foram de aprender a separação. A separação que nunca termina, que não tem fim. Um aprendizado que, de repente, parece que tenho que começar de novo e de novo, sempre. Não te deixo para trás. Cada coisa nova trás uma ponta de você, dessa marca decantada em mim que é uma parte do que você é agora. Porque agora você é apenas e tão somente as marcas que deixou para trás, e nisso há um orgulho que carrego junto a essa dor: o orgulho de saber que te carrego em tantas marcas; que no que você mudou em mim, você mudou o mundo, e por isso não desisto. Um passo adiante é uma marca sua, que você assina comigo. Que em tantos desencontros faiscaram, angustiaram.
É indelével a dor de ter falhado, de ser humano, de ver no passado o erro que todos carregamos - o erro de sermos, apenas. Os sentimentos mais estúpidos vêm e vão; às vezes, e com frequência, tudo o que sou capaz de fazer é ignorá-los. A vida me dá cada vez menos tempo para visitar a sua memória, e por isso ela, irreprimível, vem me pegar a contragolpe em uma besteira qualquer do dia. Me pego te lembrando, secretamente, no busão, na bilheteria, numa conversa com alguém que nem imagina que você está ali também presente; gente que não te conheceu, que não faz ideia do quanto de mim é também você; do quanto de você vive em mim. Me pego sussurrando desculpas a você, a uma pessoa que não existe. Desculpas por tudo o que não tinha como fazer; desculpas por não ser o que nenhuma pessoa pode ser; e, mesmo sabendo disso tudo, ainda queria encostar no seu ombro e poder sussurrar: "desculpa". Ou, "eu te amo", o que daria na mesma.
Nesses três anos sinto a dor da sua ausência, a marca da sua presença. Não me esqueço, não perdoo esse mundo, e te garanto, ainda e uma vez mais, que não foi em vão que o repouso para suas dores teve que ser tão drástico, tão súbito, tão incontido. Ainda te amamos. Sempre. E não esqueço que você nunca me esqueceria.
Eu perdi cabelo, ganhei peso, terminei o mestrado, mudei de casa, mudei de emprego, comecei a estudar psicanálise, terminei relacionamentos, comecei relacionamentos, parei de tomar remédios, mudei, fiquei o mesmo.
Você não.
Continua cristalizada, eternizada há três anos atrás. Sua carne desfeita, roída por vermes, seu rosto a existir naquelas memórias, as poucas, as persistentes. Seus sonhos, parados, estáticos, por serem sonhados. O tempo não passa mais.
Em três anos continuo a te sonhar, a te chorar. Você continua a ser minha dor, secreta, que diuturnamente me pega a contragolpe, me volta aguda, no nervo, num relance. Num cabelo cacheado, num cheiro, num livro, num filme, num sorriso de alguém novo, num soprar de fumaça. Num desafio a ser feito.
Porra. Queria te contar as novidades... não dá. Não tem mais novidades para você. Você ficaria feliz com elas, eu sei. Com sua voz meio estridente, seu jeito atrapalhado de falar, quantas críticas boas já teriam escapado de sua boca; quantas vezes teria se animado, apesar de tudo, e teria tomado a frente de novo. Aqueles momentos que faziam tudo valer a pena. Sei que eles ficaram ofuscados para você, mas sei também como eles existiam, eram muitos, e o quanto me alegro de ter compartilhado uma porção deles com você. Penso no que estaria fazendo. Estaria ainda na USP? No México? Estudando psicanálise comigo, aprofundando nossa parceria tão forte?
Em cada conquista, em cada passo adiante, você falta. E está lá. Ainda é quem me dá força pra tomar a batalha em dois fronts, no político e no psíquico. Continuo dando a luta que aprendi com você, carregando um sonho que tivemos juntos. Queria ser quadridimensional como um Dr. Manhattan, para poder voltar, tocar seus cachos, seu rosto, suas cicatrizes. Sentir você uma vez mais. Te dizer esse "obrigado" eternamente entalado na minha garganta.
Que merda. Essa dor aqui, indissoluta, indissolúvel, que se mistura aos poucos nesses anos que vão vindo, que vão trazendo uma montanha de coisas, coisas que se acumulam, por cima das velhas memórias, por cima, por cima do que sinto. Do que te sinto. Dessa dor, desse sonho, basilar, subjacente a tudo o que sou e que existe para mim. Esse sonho interrompido, como um suspiro, que, afinal, é do que a vida - não só a sua - é feita, sempre. Esse suspiro entrecortado, abafado pelo ruído de um mundo que nos interrompe.
Lembro que tinha medo de te esquecer. Medo desse futuro tão grande sem você. É horrível pensar que o tempo que decorreu desde que você foi embora é já maior do que o tempo que passei contigo. O tempo que passei com sua ausência é maior que o tempo ao seu lado. Já não consigo mais nem parar um pouco e remoer o passado. Esse luto inconcluso, esse luto permanente.
Esses anos, cada dia, foram de aprender a separação. A separação que nunca termina, que não tem fim. Um aprendizado que, de repente, parece que tenho que começar de novo e de novo, sempre. Não te deixo para trás. Cada coisa nova trás uma ponta de você, dessa marca decantada em mim que é uma parte do que você é agora. Porque agora você é apenas e tão somente as marcas que deixou para trás, e nisso há um orgulho que carrego junto a essa dor: o orgulho de saber que te carrego em tantas marcas; que no que você mudou em mim, você mudou o mundo, e por isso não desisto. Um passo adiante é uma marca sua, que você assina comigo. Que em tantos desencontros faiscaram, angustiaram.
É indelével a dor de ter falhado, de ser humano, de ver no passado o erro que todos carregamos - o erro de sermos, apenas. Os sentimentos mais estúpidos vêm e vão; às vezes, e com frequência, tudo o que sou capaz de fazer é ignorá-los. A vida me dá cada vez menos tempo para visitar a sua memória, e por isso ela, irreprimível, vem me pegar a contragolpe em uma besteira qualquer do dia. Me pego te lembrando, secretamente, no busão, na bilheteria, numa conversa com alguém que nem imagina que você está ali também presente; gente que não te conheceu, que não faz ideia do quanto de mim é também você; do quanto de você vive em mim. Me pego sussurrando desculpas a você, a uma pessoa que não existe. Desculpas por tudo o que não tinha como fazer; desculpas por não ser o que nenhuma pessoa pode ser; e, mesmo sabendo disso tudo, ainda queria encostar no seu ombro e poder sussurrar: "desculpa". Ou, "eu te amo", o que daria na mesma.
Nesses três anos sinto a dor da sua ausência, a marca da sua presença. Não me esqueço, não perdoo esse mundo, e te garanto, ainda e uma vez mais, que não foi em vão que o repouso para suas dores teve que ser tão drástico, tão súbito, tão incontido. Ainda te amamos. Sempre. E não esqueço que você nunca me esqueceria.
segunda-feira, março 16, 2015
Golpe à vista?
Depois de ontem, vi muita gente ficar com medo. É bastante normal e compreensível: por onde se olhasse, uma maré verde e amarela cheia de vuvuzelas escorria pelas ruas da cidade em direção à Avenida Paulista. E, bom, já acabou a Copa né? (E que Copa inesquecível, hahaha). Vou falar especificamente de São Paulo, não apenas porque era o maior ato, como é o que eu vi de pertinho. Sim, eu fui lá ver o que rolava.
Pra começo de conversa, limpemos os campos a respeito dos números. A polícia falou em um milhão. Eu estive lá e vi, com meus olhos que a terra há de comer, quantas pessoas tinham; não tinham um milhão de jeito nenhum. Mas, como minha palavra pode não te convencer, sejamos mais científicos e vamos a uma conta rápida (tudo bem se você for de humanas, é bem fácil de entender e eu também sou). A Paulista tem seis pistas, certo? De cerca de 3,5m cada uma. Mais duas calçadas, digamos que cada uma tem cinco metros. E a extensão da avenida é de 2.700 metros, ok? Então, [(6 x 3,5) + 10] x 2.700 = 79.650 metros quadrados. Suponhamos, então, uma concentração bastante densa de pessoas em toda a extensão (bem mais do que tinha, mas vamos dar uma colher de chá para a "luta pela pátria"), de 3 pessoas por metro quadrado (tipo um trio elétrico bem animado do carnaval da Bahia). Assim, teríamos 3 x 79.650 = 238.950. Olha, tá bem próximo do número da folha, de 210.000 pessoas. Um pouco distante, contudo, daquele da polícia, que alegou ter usado "métodos geoestatísticos" em sua contagem. Uau! Melhor acreditarmos então que cabe um milhão de pessoas entuchadas na Paulista graças aos tais "métodos geoestatísticos" secretos da PM, que, aliás, é dirigida pelo governador do PSDB e não tem, claro, nenhum interesse em inflar os números do ato anti-Dilma.
Ok, então com esse número sério, sejamos francos: é gente pra caralho. E, afinal, quem eram essas pessoas que saíram no domingo com suas vuvuzelas e camisas do Brasil sem nenhum jogo pra ver? Circulando pelo ato e pelo trajeto até ele, uma coisa era nítida: tratava-se, em 90% pelo menos, daquilo que a """"jornalista"""" Eliane Catanhede definiu certa vez, de maneira muito filosófica, como uma "massa cheirosa"
Em que consiste a tal "massa cheirosa"? Aquilo que reunimos sobre o heterogêneo nome de "classe média". Gente que não se identifica como trabalhador e que, em geral, sente certo "nojinho" deles. Afinal, trabalhar cansa, trabalhar sua, trabalhar dá trabalho, e, no fim do dia, às vezes não estamos mesmo tão cheirosos quanto uma emperequetada madame dos jardins. Ainda bem que por enquanto ainda dá pra tomar banho, mas o futuro dessa prática das massas é incerto em São Paulo...
No transporte público com destino ao ato, notava-se um dos sintomas de ser parte da massa cheirosa: a ausência de conhecimento sobre o que é e como funciona um busão ou um metrô. As bilheterias tinham filas imensas, porque essa galera anda de carro e não tem bilhete único, esse importante instrumento cotidiano do trabalhador normal. Vários de meus colegas metroviários amargaram seu domingo dando alguns milhares de vezes informações elementares que todo usuário do metrô sabe... mas uma massa cheirosa e bem esclarecida, não.
E, afinal, essa gente quer um golpe militar? Quer a volta da ditadura? Bom, havia gente pedindo isso no ato sim. Três imensos carros de som localizados em frente ao MASP faziam um discurso sanguinolento bem típico das "viúvas de 1964", como Jair Bolsonaro. Espumando ódio, eles diziam que só os milicos podem varrer o país.
Em torno desses carros de som se reuniram, chutando alto, umas 3 mil pessoas. Em dado momento eles decidiram marchar até sei lá onde pedindo para os milicos tomarem a atitude varonil que lhes cabe, e com muita hombriedade, deporem a Dilma e tomarem o poder. Eu não estava nesse momento, mas ouvi relatos de que aproximadamente 500 babacas os seguiram. O resto do ato passeava alegremente com cartazes que diziam "Fora Dilma", "Fora PT", "Fora corruPTos" e coisas afim. A palavra de ordem que mais ouvi sendo cantada (raramente eles cantavam) era "Lula cachaceiro, devolve meu dinheiro".
Essa gente quer um golpe? Não me parece... tem ali alguns reacionários conscientes, claro. Mas, em geral, é uma galera que está puta, perdida, lê muita Veja e acha que trabalha pra caralho pra ter sua vida digna, e que todo mundo poderia e deveria fazer o mesmo. A real é que muitos dos motivos que eles têm para protestar, em que pese o ridículo com o qual vestem estes motivos, é muito pertinente. Os políticos estão enchendo o cu de grana e isso é um absurdo que tem que acabar. O que talvez eles não tenham entendido (muitos) ou não queriam entender (poucos) é que são todos os políticos, de todos os partidos burgueses, e também os juízes, os funcionários de alto escalão, os deputados, os senadores... além disso, esse dinheiro não é só de corrupção - algo que vai existir enquanto esse sistema de representavidade podre estiver de pé - mas são todas as mamatas de que desfrutam, como as verbas de gabinete, os "auxílios", os salários exuberantes. A corrupção e sua respectiva impunidade nada tem a ver com o PT (ou melhor, tem tudo a ver com o PT), ela já estava lá desde que se criou o parlamento, o executivo, o judiciário. Os problemas da vida da classe média, que começa a sentir e em breve sentirá mais os efeitos da crise (que já atingem em cheio os trabalhadores) são o problema de um sistema gerido por parasitas. Militares, PSDB ou o que quer que seja vai mudar os "enfeites" para manter o essencial, e, aliás, os partidos todos já afirmaram (como o fez ontem Aécio após os atos) que estão de acordo nesse "pacto".
É por isso tudo que não, não podemos também ir de gaiato no discurso histérico dos petistas que dizem que é um bando de coxinha golpista que quer acabar com os avanços sociais do PT com uma ditadura militar. Hoje, em milhares de fábricas, de operadoras de telemarketing, de supermercados, trabalhadores se identificavam e aplaudiam o ato de ontem. Eles, muito mais do que a "massa cheirosa", têm muitos motivos para se indignar. Os "avanços sociais" do novo governo da Dilma consistem em inflação, corte de direitos trabalhistas, corte de orçamento para áreas como educação e um discurso de "segura firma que vou botar pra foder" que Dilma fez no 8 de março. Portanto, defender a Dilma contra "os coxinhas", "o PIG", a "direita golpista" é a última coisa que qualquer um deva fazer para lutar contra essa merda toda que aí está. O que temos que fazer é dar respostas sérias, que não só sejam respostas pros trabalhadores tomarem em suas próprias mãos para fazer, pois não serão feitas por nenhum pilantra desses, mas que também possam mostrar a muitos dos que estavam na Paulista ontem que tocar vuvuzela de verde e amarelo e dizer "fora PT" que isso não vai resolver nenhum problema nesse país, nem os seus, nem os dos trabalhadores.
Por fim, há muita gente dizendo que a situação de hoje é análoga a 1964. A esses afobados eu digo: calma lá, amigo. Ao contrário do que a historiografia oficial nos ensina, o golpe de 1964 não foi contra o Jango. Foi contra as Ligas Camponesas que avançavam a luta no campo por reforma agrária. Foi contra o movimento operário que protagonizava greves de centenas de milhares de operários. Foi contra a rebelião na base das forças armadas que fazia sovietes de marinheiros e se rebelava contra os oficiais. Isso criou a necessidade de um golpe. Que burguesia vai querer dar um golpe quando a presidente está aplicando à risca tudo o que ela precisa e quer, todos os ajustes contra os trabalhadores? Não há nenhuma comparação possível entre essas duas situações históricas...
Àqueles que continuem achando que há um "golpe em marcha" no país, recomendo que tomem alguns desses elementos que coloquei aí para pensarem com mais cuidado, pesquisando sobre o que está rolando nesses atos. Também recomendo fortemente a leitura desse texto.
Pra começo de conversa, limpemos os campos a respeito dos números. A polícia falou em um milhão. Eu estive lá e vi, com meus olhos que a terra há de comer, quantas pessoas tinham; não tinham um milhão de jeito nenhum. Mas, como minha palavra pode não te convencer, sejamos mais científicos e vamos a uma conta rápida (tudo bem se você for de humanas, é bem fácil de entender e eu também sou). A Paulista tem seis pistas, certo? De cerca de 3,5m cada uma. Mais duas calçadas, digamos que cada uma tem cinco metros. E a extensão da avenida é de 2.700 metros, ok? Então, [(6 x 3,5) + 10] x 2.700 = 79.650 metros quadrados. Suponhamos, então, uma concentração bastante densa de pessoas em toda a extensão (bem mais do que tinha, mas vamos dar uma colher de chá para a "luta pela pátria"), de 3 pessoas por metro quadrado (tipo um trio elétrico bem animado do carnaval da Bahia). Assim, teríamos 3 x 79.650 = 238.950. Olha, tá bem próximo do número da folha, de 210.000 pessoas. Um pouco distante, contudo, daquele da polícia, que alegou ter usado "métodos geoestatísticos" em sua contagem. Uau! Melhor acreditarmos então que cabe um milhão de pessoas entuchadas na Paulista graças aos tais "métodos geoestatísticos" secretos da PM, que, aliás, é dirigida pelo governador do PSDB e não tem, claro, nenhum interesse em inflar os números do ato anti-Dilma.
Ok, então com esse número sério, sejamos francos: é gente pra caralho. E, afinal, quem eram essas pessoas que saíram no domingo com suas vuvuzelas e camisas do Brasil sem nenhum jogo pra ver? Circulando pelo ato e pelo trajeto até ele, uma coisa era nítida: tratava-se, em 90% pelo menos, daquilo que a """"jornalista"""" Eliane Catanhede definiu certa vez, de maneira muito filosófica, como uma "massa cheirosa"
Um orgulhoso membro da "massa cheirosa" se declara ao mundo |
Em que consiste a tal "massa cheirosa"? Aquilo que reunimos sobre o heterogêneo nome de "classe média". Gente que não se identifica como trabalhador e que, em geral, sente certo "nojinho" deles. Afinal, trabalhar cansa, trabalhar sua, trabalhar dá trabalho, e, no fim do dia, às vezes não estamos mesmo tão cheirosos quanto uma emperequetada madame dos jardins. Ainda bem que por enquanto ainda dá pra tomar banho, mas o futuro dessa prática das massas é incerto em São Paulo...
No transporte público com destino ao ato, notava-se um dos sintomas de ser parte da massa cheirosa: a ausência de conhecimento sobre o que é e como funciona um busão ou um metrô. As bilheterias tinham filas imensas, porque essa galera anda de carro e não tem bilhete único, esse importante instrumento cotidiano do trabalhador normal. Vários de meus colegas metroviários amargaram seu domingo dando alguns milhares de vezes informações elementares que todo usuário do metrô sabe... mas uma massa cheirosa e bem esclarecida, não.
A "massa cheirosa" aprende a pegar o busão |
E, afinal, essa gente quer um golpe militar? Quer a volta da ditadura? Bom, havia gente pedindo isso no ato sim. Três imensos carros de som localizados em frente ao MASP faziam um discurso sanguinolento bem típico das "viúvas de 1964", como Jair Bolsonaro. Espumando ódio, eles diziam que só os milicos podem varrer o país.
FFAA pede intervenção militar: "Marcha da família com Deus pela Liberdade. 1964 mais vivo do que nunca" |
Em torno desses carros de som se reuniram, chutando alto, umas 3 mil pessoas. Em dado momento eles decidiram marchar até sei lá onde pedindo para os milicos tomarem a atitude varonil que lhes cabe, e com muita hombriedade, deporem a Dilma e tomarem o poder. Eu não estava nesse momento, mas ouvi relatos de que aproximadamente 500 babacas os seguiram. O resto do ato passeava alegremente com cartazes que diziam "Fora Dilma", "Fora PT", "Fora corruPTos" e coisas afim. A palavra de ordem que mais ouvi sendo cantada (raramente eles cantavam) era "Lula cachaceiro, devolve meu dinheiro".
Exemplar de cidadão altamente politizado e consciente indo ao ato |
Essa gente quer um golpe? Não me parece... tem ali alguns reacionários conscientes, claro. Mas, em geral, é uma galera que está puta, perdida, lê muita Veja e acha que trabalha pra caralho pra ter sua vida digna, e que todo mundo poderia e deveria fazer o mesmo. A real é que muitos dos motivos que eles têm para protestar, em que pese o ridículo com o qual vestem estes motivos, é muito pertinente. Os políticos estão enchendo o cu de grana e isso é um absurdo que tem que acabar. O que talvez eles não tenham entendido (muitos) ou não queriam entender (poucos) é que são todos os políticos, de todos os partidos burgueses, e também os juízes, os funcionários de alto escalão, os deputados, os senadores... além disso, esse dinheiro não é só de corrupção - algo que vai existir enquanto esse sistema de representavidade podre estiver de pé - mas são todas as mamatas de que desfrutam, como as verbas de gabinete, os "auxílios", os salários exuberantes. A corrupção e sua respectiva impunidade nada tem a ver com o PT (ou melhor, tem tudo a ver com o PT), ela já estava lá desde que se criou o parlamento, o executivo, o judiciário. Os problemas da vida da classe média, que começa a sentir e em breve sentirá mais os efeitos da crise (que já atingem em cheio os trabalhadores) são o problema de um sistema gerido por parasitas. Militares, PSDB ou o que quer que seja vai mudar os "enfeites" para manter o essencial, e, aliás, os partidos todos já afirmaram (como o fez ontem Aécio após os atos) que estão de acordo nesse "pacto".
É por isso tudo que não, não podemos também ir de gaiato no discurso histérico dos petistas que dizem que é um bando de coxinha golpista que quer acabar com os avanços sociais do PT com uma ditadura militar. Hoje, em milhares de fábricas, de operadoras de telemarketing, de supermercados, trabalhadores se identificavam e aplaudiam o ato de ontem. Eles, muito mais do que a "massa cheirosa", têm muitos motivos para se indignar. Os "avanços sociais" do novo governo da Dilma consistem em inflação, corte de direitos trabalhistas, corte de orçamento para áreas como educação e um discurso de "segura firma que vou botar pra foder" que Dilma fez no 8 de março. Portanto, defender a Dilma contra "os coxinhas", "o PIG", a "direita golpista" é a última coisa que qualquer um deva fazer para lutar contra essa merda toda que aí está. O que temos que fazer é dar respostas sérias, que não só sejam respostas pros trabalhadores tomarem em suas próprias mãos para fazer, pois não serão feitas por nenhum pilantra desses, mas que também possam mostrar a muitos dos que estavam na Paulista ontem que tocar vuvuzela de verde e amarelo e dizer "fora PT" que isso não vai resolver nenhum problema nesse país, nem os seus, nem os dos trabalhadores.
Por fim, há muita gente dizendo que a situação de hoje é análoga a 1964. A esses afobados eu digo: calma lá, amigo. Ao contrário do que a historiografia oficial nos ensina, o golpe de 1964 não foi contra o Jango. Foi contra as Ligas Camponesas que avançavam a luta no campo por reforma agrária. Foi contra o movimento operário que protagonizava greves de centenas de milhares de operários. Foi contra a rebelião na base das forças armadas que fazia sovietes de marinheiros e se rebelava contra os oficiais. Isso criou a necessidade de um golpe. Que burguesia vai querer dar um golpe quando a presidente está aplicando à risca tudo o que ela precisa e quer, todos os ajustes contra os trabalhadores? Não há nenhuma comparação possível entre essas duas situações históricas...
Àqueles que continuem achando que há um "golpe em marcha" no país, recomendo que tomem alguns desses elementos que coloquei aí para pensarem com mais cuidado, pesquisando sobre o que está rolando nesses atos. Também recomendo fortemente a leitura desse texto.
sexta-feira, março 06, 2015
Plano B
Nossos olhos se batem,
se grudam,
e o estranho desconforto de te desconhecer me assola
só queria te dizer o quanto isso é normal
e ser tua carne
mas nunca.
A prisão ao avesso de meus privilégios me amputa
do desejo estúpido de me largar,
de largar de tudo, e te dizer
me toma. Como se fosse tua, e sempre.
Esbarro em teus olhos mais uma vez
para nunca mais
reincidente nessa noite
em ser um plano B
primeiro, a quem me revelei, sem pudor
para amargar o arrependimento de ser mais um
depois, de meu próprio pudor
em ter nascido como quem nunca assumiu
a estupidez, o fardo de ser um escroto
(sem saber como)
e nem sei tuas grades, mas fantasio
quero destruí-las
mas meus braços não alcançam
não tem força para destruir as grades do mundo
e sequer as tuas, pessoa incógnita
levou meus olhos
e meu desejo, de ser outro, de ser,
apenas
e quem pode apenas ser em um mundo como esse?
desço com um adeus
segunda-feira, fevereiro 02, 2015
Do que é feito o amor
É noite. Densa e sem estrelas, abafada, sem vento, sem vida, sem canto. É noite e nos arrastamos sem luz, horas adentro, horas a fio. A perna cansada persiste tesa, impassível, sobrevivente de uma vida sem rastros.
Cuspo os restos de sonhos na pia com a pasta de dente que lava o café de minha boca. Amarga ela persiste, com o gosto de menta. As palavras continuam de desmanchando nas horas, repetidas, eternas, sem sentido. Embalado em uma casca, persisto em não ser. De pé.
É noite. É dia? É morte. É vida? Já não se sabe se há algo ainda para ser, em meio a tantos dias inertes, sem sombra, sem refresco, sem porquê. E, no entanto persisto.
Numa tarde, que poderia muito bem ser mais um poço de nojo e tédio, fixo teus olhos. Teus dentes, brancos, imensos, são um sorriso que não existe. Me traga. Em alguns minutos, horas, dias (o que é esse tempo, esse tempo que inventaram fora de nós?) as fronteiras, os abismos se desfizeram, se diluíram, me derreteram em uma fusão de prantos, de risos, de sonhos. Absorvo o detalhe mais mínimo e o coloco em um altar de futuro. Queimo minhas velas, meus barcos. Me afogo. Já não há minuto sem aquela pinta, aquela fala que gagueja sem hesitar. Que me afirma, me xinga, em um desenho me corta e me vira do avesso. Me exclama em um desejo, o meu.
As pernas já não são tesas. São moles, bambas, o riso frouxo. A entrega. O peito aberto e o medo, inútil, a querer espreitar, a querer encobrir. Inútil. Já não sou do medo, nem do tédio. Já não sou das lágrimas, secas, sem escorrer. As lágrimas vertem novamente, aos montes, ao menor pronunciamento que saia por entre aqueles lábios, tão novos, tão sonhos, tão tudo. Os lábios que me têm entre eles. Que sopram, de leve, e sussurram o sentido de tudo.
Teus seios, teu sexo, meu corpo, fundido. A seiscentos quilômetros, e ainda assim fundido. A maluquice me segue. Ela te arrastou para cá, te jogou em mim, levou aquele ranço pegajoso que fazia eu me arrastar pelos cantos. Quero tua voz chorosa na madrugada, para dizer que sou teu. Que não há dor que crie essa beleza tamanha e que me possa ser estranha ou indiferente. Deixa-me mergulhar nos teus sonhos, nos teus pelos, nos teus dias, no desenho infinito de sua vida. Toma de minhas mãos essa bandeira que você fez tremular novamente. Caminhemos lado a lado, porque os dias, já não há porque temê-los. São repletos, plenos, poucos.
Cuspo os restos de sonhos na pia com a pasta de dente que lava o café de minha boca. Amarga ela persiste, com o gosto de menta. As palavras continuam de desmanchando nas horas, repetidas, eternas, sem sentido. Embalado em uma casca, persisto em não ser. De pé.
É noite. É dia? É morte. É vida? Já não se sabe se há algo ainda para ser, em meio a tantos dias inertes, sem sombra, sem refresco, sem porquê. E, no entanto persisto.
Numa tarde, que poderia muito bem ser mais um poço de nojo e tédio, fixo teus olhos. Teus dentes, brancos, imensos, são um sorriso que não existe. Me traga. Em alguns minutos, horas, dias (o que é esse tempo, esse tempo que inventaram fora de nós?) as fronteiras, os abismos se desfizeram, se diluíram, me derreteram em uma fusão de prantos, de risos, de sonhos. Absorvo o detalhe mais mínimo e o coloco em um altar de futuro. Queimo minhas velas, meus barcos. Me afogo. Já não há minuto sem aquela pinta, aquela fala que gagueja sem hesitar. Que me afirma, me xinga, em um desenho me corta e me vira do avesso. Me exclama em um desejo, o meu.
As pernas já não são tesas. São moles, bambas, o riso frouxo. A entrega. O peito aberto e o medo, inútil, a querer espreitar, a querer encobrir. Inútil. Já não sou do medo, nem do tédio. Já não sou das lágrimas, secas, sem escorrer. As lágrimas vertem novamente, aos montes, ao menor pronunciamento que saia por entre aqueles lábios, tão novos, tão sonhos, tão tudo. Os lábios que me têm entre eles. Que sopram, de leve, e sussurram o sentido de tudo.
Teus seios, teu sexo, meu corpo, fundido. A seiscentos quilômetros, e ainda assim fundido. A maluquice me segue. Ela te arrastou para cá, te jogou em mim, levou aquele ranço pegajoso que fazia eu me arrastar pelos cantos. Quero tua voz chorosa na madrugada, para dizer que sou teu. Que não há dor que crie essa beleza tamanha e que me possa ser estranha ou indiferente. Deixa-me mergulhar nos teus sonhos, nos teus pelos, nos teus dias, no desenho infinito de sua vida. Toma de minhas mãos essa bandeira que você fez tremular novamente. Caminhemos lado a lado, porque os dias, já não há porque temê-los. São repletos, plenos, poucos.
sábado, janeiro 24, 2015
Destituindo-se, despindo-se lentamente, parte a parte, dia a dia. Como montar um quebra-cabeça ao contrário, retirando cada peça, uma por vez, até que o grande desenho coerente e completo vá se transformando em um monte de fragmentos dispersos, inconclusos, incoerentes.
Ver-se ao contrário, desdito, desvisto. Redescriado, um parto para o interior de si mesmo, vivendo nas estranhas entranhas das circunvoluções do cérebro. As palavras, lá fora, ao longe, balbuciadas como rumores de uma civilização antiga da qual se desconhece por completo os significados, os ritos, os dias.
Uma morte ao olhar a face sem reciprocidade do outro. Emaranhado de traços, dessentidos. Esquecer-se do humano como o outro, como a si, como o repositório de sentido. Porque já não há comunicação. As palavras, antes brilhantes, são despejos de sons guturais vindos da caverna de um tempo em que tudo era outro. Em que se era gente, com tudo, tudo mesmo, até aqueles papéis que se usam para identificar. Até aqueles papéis, aqueles gestos, aquelas mesuras sociais que já viraram um edifício de sentidos por si mesmas. Ninguém precisava mais encontrar o sentido, ele já havia se estabelecido em seus sólidos alicerces, fundos, fortes, há milênios. Se era gente.
Hoje, não mais. Hoje balbucios, desencontros. Hoje os rostos, traços desconjunturados. Hoje os sons, os sons. A luz, fere os olhos. Hoje já não há mais dias, mais tempo, mais vida. A morte, de longe se avista, como a única fonte de sentido (amor?). Abraçar-te, ao longe. Tomar fôlego e mergulhar, procurar o sentido ali, onde já não há esse desespero esbaforido a nos perseguir. Onde des-existir é um ato morno, de ternura, e não mais os rituais sangrentos de poder desse mundo fétido, praticados contra aqueles que se quer dominar. A morte para nós mesmos, calma, serena, procura de sentido. Refúgio da podridão dos dias. A necessidade de respostas ficou para trás.
Ver-se ao contrário, desdito, desvisto. Redescriado, um parto para o interior de si mesmo, vivendo nas estranhas entranhas das circunvoluções do cérebro. As palavras, lá fora, ao longe, balbuciadas como rumores de uma civilização antiga da qual se desconhece por completo os significados, os ritos, os dias.
Uma morte ao olhar a face sem reciprocidade do outro. Emaranhado de traços, dessentidos. Esquecer-se do humano como o outro, como a si, como o repositório de sentido. Porque já não há comunicação. As palavras, antes brilhantes, são despejos de sons guturais vindos da caverna de um tempo em que tudo era outro. Em que se era gente, com tudo, tudo mesmo, até aqueles papéis que se usam para identificar. Até aqueles papéis, aqueles gestos, aquelas mesuras sociais que já viraram um edifício de sentidos por si mesmas. Ninguém precisava mais encontrar o sentido, ele já havia se estabelecido em seus sólidos alicerces, fundos, fortes, há milênios. Se era gente.
Hoje, não mais. Hoje balbucios, desencontros. Hoje os rostos, traços desconjunturados. Hoje os sons, os sons. A luz, fere os olhos. Hoje já não há mais dias, mais tempo, mais vida. A morte, de longe se avista, como a única fonte de sentido (amor?). Abraçar-te, ao longe. Tomar fôlego e mergulhar, procurar o sentido ali, onde já não há esse desespero esbaforido a nos perseguir. Onde des-existir é um ato morno, de ternura, e não mais os rituais sangrentos de poder desse mundo fétido, praticados contra aqueles que se quer dominar. A morte para nós mesmos, calma, serena, procura de sentido. Refúgio da podridão dos dias. A necessidade de respostas ficou para trás.
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