quinta-feira, abril 10, 2014

Um dia de lutas, pela sua memória

Hoje foi um dia longo, duro e muito bom. Estive com meus camaradas no ato dos vigilantes da USP, trabalhadores da empresa Atlântico Sul, que estavam protestando em frente à reitoria por estarem com seus salários há mais de um mês atrasados. Chegamos lá vindo de nossa campanha para o DCE, a qual deixamos de lado nas urnas para colocar em prática o programa que levantamos - único motivo pelo qual participamos das eleições - de aliança com os trabalhadores em suas lutas, de defesa da efetivação dos terceirizados sem concurso. Nos aproximamos do ato sob uma salva de palmas dos trabalhadores, que imediatamente reconheceram e se fortaleceram com o apoio dos estudantes, mesmo que fossemos poucos.

Ali, pude aprender da melhor forma que há para aprender: com os trabalhadores em luta, organizados, conscientes de que são capazes de dobrar seus patrões. Vi ali muitos trabalhadores que pela primeira vez se organizavam, ainda hesitantes às vezes, mas que tornavam-se pouco a pouco sujeitos políticos de suas vidas e seus destinos; tornavam-se membros conscientes de sua própria classe. Orgulhei-me de podermos estar ao seu lado, e ao mesmo tempo me envergonhei de fazer parte de um movimento estudantil que prefere se agarrar às urnas como se isso fosse mais importante do que a vida real que acontecia ali, mais importante do que uma luta de trabalhadores que despertavam, pela primeira vez, para a vida política; trabalhadores ao lado dos quais nós, estudantes, poderíamos aprender; a quem poderíamos apoiar e, quem sabe, efetivamente fazer alguma diferença para o desfecho de sua greve. Ajudamos como pudemos: com cartazes, palavras no microfone, comprando comida para que eles pudessem aguentar ali firmes as horas de enrolação que a negociação da reitoria e da empresa impunham a eles. Enfim, saíram dali com o compromisso de pagamento para o dia 15, a ser feito pela própria USP, já que esta confia tanto na empresa que ela própria contratou que sequer irá repassar o dinheiro a esta, com medo de que eles não paguem os trabalhadores e não resolvam o problema daquela incômoda greve, ali, bem na frente da reitoria. Este compromisso feito pela reitoria é duvidoso; mas os trabalhadores saíram também com um outro compromisso, este de nossa parte e plenamente confiável: o de que, se necessário, voltaremos no dia 15, e com mais estudantes para apoiá-los.

À tarde, entreguei correndo minha dissertação de mestrado, a qual espero que possa ser uma modesta contribuição para a classe trabalhadora no resgate de sua história, de sua luta, da apropriação das ferramentas que precisamos para mudar este mundo.

E à noite, pudemos ouvir valorosos companheiros trabalhadores que foram em uma atividade de nossa chapa para nos apoiar, para compartilharmos nossa luta. Um camarada trabalhador do bandejão, onde os trabalhadores têm seu corpo literalmente destruído pelo trabalho massacrante; um camarada da indústria metalúrgia, que nos contou como foi que tomou contato com sua história, a história de sua classe, e que apoiava os estudantes que estavam ali para lutar por uma universidade a serviço desta classe; um camarada trabalhador, negro, do ABC, que falou sobre o orgulho de apoiar uma chapa que se colocava nesta luta, ao lado de cada trabalhador explorado; um camarada bancário, que contou sobre a importância da juventude que apoiou ativamente os piquetes de bancários na greve do ano passado (veja os posts anteriores aqui no blog que falo um pouco desta luta), e como isso fez toda a diferença para ajudar a acabar com o roteiro da "greve de fachada" da burocracia sindical da CUT.

E, por último e mais fundamental, pudemos ouvir um companheiro gari, vindo diretamente da sua experiência de greve no ABC, onde participou da comissão eleita pelos próprios trabalhadores, que enfrentou a justiça burguesa que julgou a greve ilegal, enfrentou seu sindicato pelego que queria acabar com a greve, e conquistou novamente para aqueles trabalhadores a ideia de que podem se organizar, podem lutar e podem vencer. 

Foi um dia de campanha para o DCE. Mas digo com muito orgulho que foi uma campanha completamente diferente de qualquer outra chapa dessa esquerda apática, acomodada e cética que temos hoje por aí. Foi um dia de estar ao lado da classe trabalhadora em luta, de aprender com ela. De reafirmar com exemplos concretos a convicção de que é esta classe - a que tudo produz - a força social que é verdadeiramente capaz de enterrar a burguesia e esse mundo miserável que ela sustenta à custa de muita dor e exploração.

Mas não é porque foi um dia de luta que eu me esqueci que há exatos dois anos eu perdia uma das pessoas que mais amei - que mais amo - nesta vida. E, voltando para casa, pude chorar sua ausência. Chorei-a porque ela teria visto o que acontece hoje como nós temos visto: com os olhos brilhando de entusiasmo pela promessa do novo. Ombro a ombro com cada um desses guerreiros da nossa classe que toma para si, de um dia para o outro, a tarefa de serem sujeitos de sua própria história. Foi um dia digno de sua memória. Não um dia de lamentar apenas, mas de celebrar e lutar aquilo pelo que ela viveu e lutou. Se há uma coisa nessa vida que apaixonou a Camila, que lhe deu forças para lutar contra seus fantasmas, era a luta por um mundo sem exploração e opressão. Eu me lembro, como se fosse ontem, de seus olhos brilhando quando ela parava e escutava, realmente escutava, o que lhe dizia um trabalhador. Ela ouvia, em todas as partes, e aprendia com a clase trabalhadora a cada dia. Tinha a humildade e a paixão de uma autêntica revolucionária. Muito diferente dos que hoje eu vi, panfletando indiferentemente, como se nada estivesse acontecendo, enquanto há poucos metros um gari, um combatente de linha de frente de sua classe, contava como ele perdeu uma promoção porque preferiu ir à luta. Contar como abriu mão de seu aumento, de seu conforto individual, para se colocar na luta por algo que é muito maior: pelo bem coletivo, pela satisfação de saber que - derrotado ou vitorioso - ele lutou pelo que era certo. Que não enfiou o rabo entre as pernas e saiu de cabeça baixa, mesmo que isso fosse dar a ele e sua família, ao seu filho de apenas um ano, uma vida mais confortável e digna. Porque há os que se contentam com o pouco que conseguem espremer da miséria, e há os que querem lutar por um mundo em que ninguém passe por humilhação, sofrimento, exploração; e, por esta causa, estão dispostos a abrir mão de ganhos individuais.

Camila, como o gari que hoje ouvimos, era uma dessas pessoas. Há quem tenha lido montanhas de livros marxistas, mas que não tem um grama dessa coragem, dessa disposição de lutar. Esses, nunca serão revolucionários. Os revolucionários são os que colocam em prática aquilo em que acreditam, e que, tendo lido apenas um panfleto, ou ouvido de orelhada qualquer coisa sobre a luta, transformam aquilo em combustível para combater, em argumentos para motivas seus companheiros de classe ou para jogar na cara do patrão e do burocrata sindical. A mulher que amei foi uma pessoa assim: ela lutou, a cada dia, para viver; e viveu, a cada dia, para lutar contra essa sociedade miserável. Nem todas as lutas vencemos. Nós todos, eu, ela, sua família, seus amigos, seus camaradas, perdemos essa luta que era a sua vida cedo demais. Com apenas vinte e seis anos perdemos uma grande guerreira, uma verdadeira revolucionária, que via a vida com os olhos dos que sofrem e que dariam tudo, tudo o que têm, sem hesitar um segundo, para mudar esse mundo, não para si, mas para todos.

Neste dia de luta, cami, não a esqueci. Como nunca a esqueço em nenhum dia, independente de como ele seja. Me alegro, no entanto, mesmo entre as lágrimas de saudades, de saber que o dia em que completa dois anos de sua partida, foi um dia de celebrar as lutas e de colocá-las em prática. Não há homenagem melhor para você.


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