sexta-feira, novembro 04, 2022

Bia Michelle


Me lembro nitidamente a primeira vez que vi essa força da natureza chamada Bia Michelle. Era um encontro estudantil, e minha organização política fazia uma reunião discreta - ao contrário do que gostaria - para debater. E do nada aparece uma galera umas três vezes maior que a reunião inteira, vindo em nossa direção, cantando alto palavras de ordem. Na frente, puxando o bonde, estava a Bia: ela trazia consigo toda a delegação do Pará. Até hoje me lembro da Dança do Carimbó com a letra que fizeram para criticar a precarização das universidades federais no governo Dilma (eles falavam do Parfor, um programa que conheci com sua música): "Ô dona Dilma que dança é essa que a gente dança só? O dona Dilma que dança é essa é do Parfor, é do Parfor..."

A Bia era assim: arrematava olhares e corações onde passava. A maioria a amava, e uma minoria ressentida certamente a odiava. Indiferente à sua presença, quase impossível. Nossa passagem naquele encontro estudantil foi marcada pra mim pela confluência dos que vinham comigo e ela e os estudantes paraenses. Depois, nunca mais quis perder aquela mulher na minha vida. 

Não demorou muito pra nos reencontrarmos, apesar do país imenso que nos separava então.

Quando, formada, a Bia quis ir pra SP, falei que ia ajudar ela a arrumar um lugar. Sem dúvida isso selou nossa amizade, porque ela nunca esqueceu como um quase desconhecido a ajudou a se instalar nessa cloaca do capitalismo onde a vida é tão dura. Dali pra frente, nada poderia nos separar. O plano era que ficasse provisoriamente na república onde morava minha namorada, Kaky, até ter um lugar definitivo. Elas até então não se conheciam, e fomos buscar Bia no aeroporto e a levamos pra lá. Mas elas se deram tão bem que ficou ali, e ali a Bia Michelle conquistou mais uns corações - e umas inimizades, porque também quando pegava rancor de alguém, era profundo como seus amores.

A Bia Michelle que conheci primeiro foi a militante, que na UFRA, onde se graduou em Sistemas de Informação, deu uma canseira das boas na reitoria. Mas, curiosamente, ela não deixou também de cativar até o reitor, que a conhecia pelo nome e a tratava com deferência e até simpatia - aprendeu a respeitar uma adversária que sem dúvida superava sua estatura.

Bia tinha o tino pra luta, e logo se organizou no que tinha mais de esquerda e combativo pela sua região: o PSTU, que dirigia o sindicato da construção civil e era forte no movimento estudantil. Mas Bia era arredia demais pra organizações onde não questionar os dirigentes é o tom geral: logo ela saiu, dando dor de cabeça pra sua antiga organização - ela sozinha era um polo organizador dos estudantes em luta, em torno do qual girava o movimento estudantil de sua universidade.

Nesse encontro nacional, no qual o PSTU teve que aturar a sua presença a contragosto, ela conheceu a LER-QI, organização em que militava. Passou a se aproximar politicamente, levando consigo toda a delegação paraense. Marcou presença ali como em todos os espaços por onde passava. Mas logo sua verve indomável se expressou: suas posições fortes logo viravam pechas na boca de quem não conseguia debater com essa mulher de inteligência e obstinação. Não se curvava, e por isso "não servia". Passou ali como um furacão, e logo se foi, carregando mágoa e deixando rancores. 

Felizmente minha amizade com ela era maior do que isso, e das pouquíssimas pessoas dali com quem quis manter contato depois disso, eu fui uma. Acompanhei o pão que o diabo amassou que ela comeu nessa cidade horrivelmente inóspita, imprópria para a vida humana, chamada São Paulo. Quem mora aqui sabe como é impossível se encontrar na correria do dia-a-dia, mas infalivelmente eu encontrava Bia em seus vários "aniversários" que fazia por ano no boteco sujo em frente ao Copan, onde morou por um tempo. A foto, aliás, é de um desses dias.

Bia tinha um coração do tamanho do mundo, e não era feita só de força: ela sofria, e muito, com os preconceitos dessa sociedade. Afundou em tristeza, mas a bicha era dura. Transformou tudo isso em luta. Foi reconhecida e ganhou espaços. Na EACH, onde fez seu mestrado, também foi ponta-de-lança de lutas importantes. Teve a coragem de mudar de área no meio da sua pesquisa, indo estudar e defender os direitos das pessoas trans. Ela sentia na pele as injustiçãs e não aguentava calada. Conseguiu fazer a proeza de juntar seu imenso conhecimento e talento em computação ao ativismo político de que estava impregnada até a medula, como modo de vida.

Bia era andarilha, e passou por cada região do país, deixando atrás de si um rastro de amigos sempre saudosos. A última vez que a vi pessoalmente foi em seu aniversário/despedida de São Paulo, quando foi morar em Porto Alegre, onde fazia seu doutorado em Ciência da Computação. A gente se falava principalmente quando ela não tava bem nesses últimos anos. Ela me pedia ajuda, e eu fico feliz que ela tivesse essa confiança em mim. Mas eu me preocupava, e a distância é terrível nessas horas. Algumas vezes me chamou, e algumas vezes prometi, ir ver ela em Porto Alegre. Dói demais saber que isso nunca vai acontecer. Bia era jovem demais. E uma dessas pessoas boas demais pra esse mundo tão ruim, que fica pior com sua partida. Pra mim, que a tinha nessa conta cada vez mais estreita e magra de gente com quem se pode contar, e em cujo caráter e amor se confia cegamente, fica muito pior. Bia deixa um rombo no coração de muita gente. E uma pequena medida do tanto que era querida por tantos se mostra no fato de que em uma tarde se conseguiu arrecadar 27 mil reais (tudo certamente juntado aos miúdos de tantos amigos pé rapados como nós) para ajudar a levar seu corpo para sua terra, junto à sua família, onde será enterrada no sábado.

Não tive o privilégio de conhecer a família de minha amiga, mas meu coração está com eles agora. Que dor imensa perder uma pessoa assim, dessas que não se encontra por aí. Que carrega em si a dor do mundo, e que, mesmo esmagada sob esse peso descomunal, te estende a mão e te chama a lutar, amar e viver. 

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