Me perdoem se for
preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada
doméstica. Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível.
Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõem a
partir da aparência... coitada da nossa população. Será que eles
entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo.
- Michele
Borges, jornalista em seu Facebook.
Eu
estive lá, eu vi de perto quem são e como se formam as pessoas que
se juntaram por um instinto de auto-defesa corporativa para chamar os
médicos cubanos de “escravos”. Passei mais de um ano estudando
medicina com estas pessoas, e posso afirmar que foi uma experiência
que marcou minha vida. Me ensinou muito concretamente algo que eu
viria a aprender teoricamente apenas alguns anos depois: que a
sociedade em que vivemos é dividida em classes, com interesses
antagônicos e irreconciliáveis.
Quando
estive em uma faculdade privada de medicina, a Unisa, nos anos de
2003 e 2004 eu não era comunista. Estava muito longe disso. Era
petista, acreditava que a única possibilidade que restava à
humanidade era fazer do capitalismo o menos pior que ele pudesse ser.
A verdade é que eu pensava assim porque havia crescido e passado
toda a minha adolescência na bolha da pequena-burguesia, e isto me
impedia de ver o mundo tal como ele é; contudo, todo tipo de
alienação e limitação em minha visão política que eu pudesse
ter por conta de minha condição de classe era algo que se
relativizou muito quando entrei na medicina: para os parâmetros de
lá, eu era um subversivo total. Eu não sabia disto até o primeiro
dia de aula...
Meu
primeiro “ato subversivo” na faculdade foi ter cabelo comprido.
Segundo fui informado aos berros por um estudante do sexto ano, que
insistia também que eu “não tinha direito” de olhar para seu
rosto enquanto ele falava comigo porque eu era um “bixo”, o fato
de eu ter cabelo comprido não apenas não era uma “postura
adequada” para um profissional médico, como também um ato de
arrogância, afinal “quem eu pensava que era” para não cortar o
cabelo como todo mundo havia feito. Estas duas “acusações” me
foram repetidas algumas dezenas de vezes nos meus primeiros dias na
faculdade, quando eu era literalmente escoltado por dois seguranças
privados entre os três que haviam sido contratados pela faculdade
para “impedir trotes” depois que a Unisa foi processada pelos
pais de uma caloura, e que outro calouro teve queimaduras na virilha
após terem jogado querosene nele porque ele era um “bixo rebelde”.
Quando me acusavam de “arrogante” porque eu supostamente “me
achava melhor do que os que haviam cortado o cabelo”, a minha
resposta era bastante simples: “mas eu acho que ninguém deve ser
obrigado a cortar o cabelo”. Meus “superiores” da faculdade
ficavam estupefatos...acho que nunca tinham pensado em uma
possibilidade tão subversiva! Como assim? É a tradição! Você
entra, toma trotes e depois os aplica. Assim você aprende quem manda
e quem obedece. E você obedece para depois mandar. É a hierarquia.
O
racismo nojento que se expressou nos gritos de “escravos” contra
os médicos cubanos tampouco é incomum e para mim não foi novidade.
Basta dizer que os trotes contra os calouros são aplicados até o
dia 13 de maio, pois é o dia da “libertação dos escravos”. Na
visão dos estudantes de medicina, é claro, apenas uma “piadinha
inocente” com a carnificina secular à qual submeteram o povo negro.
Vou
poupá-los de um tanto de histórias semelhantes que seriam
suficientes para um livro e contar apenas mais dois episódios: um
deles se deu quando eu cometi o erro de ir a uma “confraternização”
da faculdade, fora do campus, onde eu estava totalmente à mercê dos
imbecis, cuja opinião sobre mim àquela altura (minha fama de “pau
no cu”, como eles diziam para se referir a quem não se adequasse
às suas regras e hierarquias, já havia corrido os quatro cantos da
faculdade) não devia ser nada melhor do que a que têm sobre os
médicos cubanos. Depois de ser submetido a algumas rodadas de
cerveja na cabeça, de ser obrigado a beber cerveja com meu próprio
cabelo cortado dentro dela, de ouvir todo tipo de insulto gritado e
cuspido em minhas orelhas, meus “superiores” me obrigaram a subir
em uma mesa para entoar o glorioso hino da faculdade tantas vezes
quantas fosse necessário até que todos os presentes se dispusessem
a me acompanhar. Faço questão de dividir a letra com vocês:
Pessoal!
Xá! (o
coro responde: Vasca!)
Xá!
Vasca!
Xavasqui!
Xavascá! Xavasqui e acolá!
Enfia o
dedo nela que ela vai arreganhar!
O que?
Arre-ga-nhar!
Na rima
do pudendo (termo médico que designa a fissura formada pelos grandes
lábios da vagina)
eu entrei
mordendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
Medicina!
Santo Amaro! Hooool!
Havia
umas tantas outras músicas que expressavam a sofisticação humana
dos meus colegas. Vou reproduzir apenas mais uma, em homenagem à
coruja loka – singelo símbolo da Atlética (o grande órgão
venerado pelos estudantes):
A coruja
bota no seu cu!
E goza, e
goza, e goza na sua boca!
Loca!
Loca, loca, loca, locaaa!
Coruja
loca!
Em
seguida, após eu passar pelo ritual de iniciação, a pose de
oficial do exército foi deixada de lado por um dos veteranos, do
sexto ano, que veio conversar comigo “sinceramente”. Disse-me que
eu não podia ter aquele tipo de postura, que agora sim eu estava
agindo de acordo, que nós precisávamos de união. “Você já
ouviu falar da máfia de branco?” Ele disse. “Nós somos a máfia
de branco. Se você precisar de ajuda, somos nós que estaremos lá
para nos ajudarmos. Numa prova, quando tivermos que colar, somos nós
que nos apoiaremos. Se acontecer alguma coisa com um paciente, somos
nós que vamos ter que acobertar. Por isto precisamos ficar unidos”.
Sim, é
isto: é uma corporação no sentido forte do termo. Eles defendem
seus interesses. Por isto se unem para repelir os médicos cubanos
que estão entrando em “seu território”. Por isto se unem para
defender o Ato Médico para tirar os outros profissionais da saúde
do “seu território”. Por isto fazem rituais de iniciação
medievais, tais como se faz na polícia ou no exército, tais como os
do Capitão Nascimento, para iniciar os “seus” em “sua
corporação”. Eles realmente se consideram melhores do que todos
os outros seres humanos, e não há exagero aqui. Apenas uma vez
consegui conversar com estudantes de outro curso no campus, que
abrigava todos os cursos de biológicas. Eles não sabiam que eu era
estudante de medicina. Quando lhes disse, imediatamente queriam
interromper a conversa: já conheciam este tipo de gente. Apenas se
abriram novamente quando lhes confessei que eu também tinha desprezo
pelos meus colegas de curso e vice-versa.
Há outra
ocasião que quero compartilhar: a visita ao hospital ligado à
universidade, o Hospital Geral do Grajaú (HGG), e a visita à
unidade do Programa de Saúde da Família (PSF) conveniado com a
universidade. No hospital, pela primeira vez fui bem tratado por uma
estudante do sexto ano. Era uma moça que talvez não tivesse contato
ou não se importasse tanto com a minha “fama”. Ela me recebeu
bem, me explicou tudo, foi extremamente gentil. Então, chegaram os
pacientes. O HGG é hospital de referência da região, onde vão
parar todos os casos minimamente graves. A estudante estava no último ano de seu
internato, período em que é “obrigada” a atender no hospital. A
rudeza com a qual ela recebeu o paciente me deixou atônito. Pegando a sonda que estava nele e a examinando rapidamente junto a uma papelada, ela identificou que já
havia recebido o paciente e que indicara que ele marcasse uma
consulta no ambulatório de especialidades da faculdade. “Eu não
te mandei ir lá marcar a consulta? Por que você não foi? Por que
voltou aqui?” O paciente, certamente intimidado em sua condição
de trabalhador e pobre diante do poder implícito do jaleco e do
título da “doutora” da “máfia de branco”, respondeu
humildemente que ele havia tentado marcar a consulta, mas que eles
tinham vagas somente para dali a três meses, e que ele precisava
limpar a sonda antes disso, e que não tinha condições de esperar tanto. Perguntava se ela poderia fazer alguma coisa por ela. Mesmo que ela quisesse muito, o que estava longe de ser o caso, não poderia: esta é a principal agonia que eu antevia na minha profissão depois de estar formado - a impossibilidade de ajudar meus pacientes mesmo que fosse um médico competente, porque simplesmente não há nenhuma infraestrutura mínima para realizar o trabalho.
A
estudante conseguia habilmente ser gentil quando se dirigia a mim, de
forma atenciosa perguntando se eu queria ajudar a trocar a sonda, e
estúpida, rude, impaciente quando se dirigia ao paciente que “não
entendia nada” das “ordens médicas”. Não posso deixar de
lembrar dos médicos cubanos, negros, como os pacientes maltratados
daquela interna. Negros “com cara de empregada”, a quem gente que
paga alguns milhares de reais por mês para estudar numa faculdade
privada de medicina está acostumada a tratar como uma categoria
inferior de seres humanos. Assim que o paciente deixou o consultório,
ela desabafou comigo: “Ainda bem que só faltam seis meses para eu
sair daqui!”. Em seguida, se tudo desse certo, ela faria residência
e abriria seu consultório particular, para nunca mais precisar
encostar ou se dirigir a um negro ou um pobre na condição de
paciente, e eles voltariam a ocupar o lugar invisível de subalternos
que a médica desejava para eles em sua vida.
Quando
fomos ao PSF, passamos em pequenos grupos de estudantes do primeiro
ano nas casas da favela do Grajaú junto com a agente comunitária,
recrutada entre os moradores dali mesmo. Imaginem vocês aqueles
estudantes que provavelmente nunca entraram em um ônibus na vida,
andando em uma favela. Depois de tantas visitas e tantas casas, a
agente desabafou conosco: “Ainda bem que vocês estão vindo aqui,
para ver como é. Nós precisamos muito de mais médicos aqui. O
pessoal se forma e vai embora, nunca mais volta e nós ficamos sem
médicos para nos atender.” Ela se afasta, um colega compartilha
seus sentimentos íntimos conosco: “Ah, me desculpa, mas eu nunca
trabalharia aqui.” Ele continuou seu discurso, mas acho que meu
cérebro, após estes anos, preferiu bloqueá-lo de minhas memórias para me poupar um pouco. Hoje, lembrando
disso, penso nos médicos que chamam os negros cubanos que deixaram
seu país por um salário de R$10 mil reais, cuja metade será paga
ao ministério da saúde de Cuba, de “escravos”. Quem trabalharia
por esta miséria? Na visão deles, apenas os médicos negros,
“escravos”, com “cara de empregada”. Será que eles sabem que
isto é muito mais do que ganha a maior parte dos trabalhadores do
Brasil? Será que eles se importam? O que meus colegas disseram já
responde a estas perguntas.
Eu
poderia continuar escrevendo muito, muito mesmo, sobre o que há de
podre na medicina. Foram estas coisas que me fizeram largar o curso
ainda no segundo ano. Eu não seria capaz de conviver com esta gente,
com seu modo de pensar, de viver. Talvez eu ficasse deprimido, talvez
fizesse um atentado ao estilo “jovem americano” entrando na
faculdade e fuzilando a todos. Preferi sair. Amadurecendo minha visão
política nos anos seguintes pude perceber as causas sociais que
levam os médicos e a medicina a serem assim. Talvez esta experiência
pessoal tenha ajudado a me empurrar um pouco mais rápido para o
socialismo. O que sei é que trazer um punhado de médicos cubanos
pode escancarar a mentalidade podre de nossos médicos, mas pouco ou
quase nada pode fazer para ajudar a que o povo pobre e trabalhador a
ter acesso a condições mínimas de saúde. E, sem dúvida, a
mudança desta situação não virá pelas mãos de Dilma nem de
nenhum governante a serviço deste Estado. Virar a medicina
brasileira de cabeça para baixo é uma tarefa para a revolução
operária e socialista.