"Quando a dor está lá há um tempo já, ela começa a se organizar. É menos insuportável, angustiante, prostador. É mais distinguível, tem partes, explicações. Dói mais aqui, ou certa memória, ou certo pensamento, ou certo jeito. As feridas, quando se fecham ou começam a se fechar, deixam marcas curiosas. Dizem, aprendi quando fui fazer minha tatuagem, que não se deve cutucar as casquinhas para não deixar marcas. Será que é por isso que sempre tive marcas? Bom, mas certas feridas se cutucam, é preciso que sejam cutucadas. Porque elas estão ali, elas estão abertas. Se nossas feridas não nos servirem para vermos onde nos machucamos e aprender algo com isso, de que servem nossas cicatrizes senão como tristes memórias de nossas quedas?"
Escrevi isto há pouco mais de um mês atrás, quando ia fazer dois meses do suicídio da cami; li poucos dias depois, e me pareceu estranho; hoje se aproximam os três meses de sua morte, e o trecho me soa absurdo. A dor não está nada organizada, a vida não está organizada. Ela é nublada, ela vem em soluços e solavancos.
A dor hoje costuma me pegar de surpresa, em meio a alguma vislumbrada ao passado que parece só mais uma das tantas que vêm involuntariamente todos os dias. Mas de repente ela se prolonga e se aprofunda. E isso vai se repetindo mais e mais, sempre que sobra um espacinho no cérebro. Começo a perceber que há uma mudança de qualidade. A saudade de um eterno imaginado vai misturando-se com a saudade de um cotidiano vivido. Vou entendendo novamente o que se disse, sobre o luto consistir em chorar cada pedacinho. Os pedacinhos de dor e saudade que vão nos vindo, vindo, vindo... Que tola minha mente, que em algum momento achou que entrava em uma curva descendente esta dor. Era uma calmaria antes da tempestade.
A ideia de sua morte hoje me parece mais absurda do que jamais fora. Quanto tempo leva para entender o tamanho de uma vida sem ela, o tamanho desta ausência? Quanto tempo leva para entender o que é pensar nela e nunca mais dizer "você"? Como faz pra caber em uma cabeça tão limitada, mundana, a ideia de que uma existência, uma consciência sem a qual eu não seria o que sou hoje, simplesmente se extinguiu? São ideias que cabem na boca, cabem nas palavras. Mas não cabem em meu entendimento. Não cabem nestas lágrimas que vêm em espasmos, e que não podem prolongar-se pelo tempo e a profundidade desta ausência. Neste deslumbramento diante do que era a vida, do que ela é; neste assombro diante de olhar para o mundo e ver o que ela é, o ponto de abandono a que chegou. De saber que a miséria que me enfia esta faca no peito é um esboço do que é a regra deste mundo.
Às vezes parece que carregar esta vida absurda, insólita, para um lugar que faça dela algo palpável e valoroso é um tiro no escuro. Somos pequeninas formigas cumprindo o destino de Sísifo, e carregando ladeira acima pedras imensas uma e outra vez mais.
Mas não é; saber que sua vida escorregou entre meus dedos, entre os dedos dela é algo de tirar o fôlego. E se esta pequenina morte, tão próxima e tão doída, é tão difícil de apalpar, ela é o mais próximo que consigo chegar diante do absurdo da realidade. Diante de milhões de mortes que são o combustível de um mundo morto-vivo. De uma fome que não quer dizer chega.
Sua voz me ressoa aos ouvidos, sinto na memória teus dedos pequeninos, teus cachos que me enlaçam em seu cheiro com cigarro. Vejo na noite seu vulto levantando-se para beber água. Não há nada ali, nem ilusões. Pego-me procurando na vida explicações, motivações, todos os fios do dia-a-dia levam-me de volta a esta fenda cavada em meu interior. Agarro-me nas palavras do velho camarada, que antes de ele mesmo meter uma bala na cabeça, cantou seu precursor no suicídio. Quem saberá por onde vamos amanhã?
A
SIERGUÉI IESSIÊNIN
Você partiu,
como
se diz,
para o outro mundo.
Vácuo. .
.
Você sobe,
entremeado às
estrelas.
Nem álcool,
nem
moedas.
Sóbrio.
Vôo sem fundo.
Não,
lessiênin,
não
posso
fazer troça, -
Na
boca
uma lasca amarga
não a mofa.
Olho -
sangue nas mãos frouxas,
você
sacode
o invólucro
dos
ossos.
Sim,
se você tivesse
um
patrono no "Posto"(1)
-
ganharia
um
conteúdo
bem diverso:
todo
dia
uma quota
de cem
versos,
longos
e lerdos,
como
Dorônin(2).
Remédio?
Para
mim,
despautério:
mais cedo
ainda
você estaria nessa
corda.
Melhor
morrer de vodca
que de tédio !
Não
revelam
as razões
desse impulso
nem o nó,
nem a navalha
aberta.
Pare,
basta !
Você perdeu o senso?
-
Deixar
que a cal
mortal
Ihe cubra o
rosto?
Você,
com todo esse talento
para o
impossível;
hábil
como poucos.
Por
quê?
Para quê?
Perplexidade.
-
É o vinho!
- a crítica esbraveja.
Tese:
refratário à sociedade.
Corolário:
muito vinho e
cerveja.
Sim,
se você
trocasse
a
boêmia
pela classe;
A classe
agiria em você,
e Ihe daria um
norte.
E a classe
por
acaso
mata a sede com xarope?
Ela sabe
beber -
nada tem de abstêmia.
Talvez,
se houvesse tinta
no
"Inglaterra"(3);
você
não cortaria
os
pulsos.
Os plagiários felizes
pedem:
bis!
Já todo
um pelotão
em
auto-execução.
Para que
aumentar
o rol de suicidas?
Antes
aumentar
a produção de tinta!
Agora
para sempre
tua
boca
está
cerrada.
Difícil
e inútil
excogitar
enigmas.
O povo,
o inventa-línguas,
perdeu
o
canoro
contramestre de noitadas.
E
levam
versos velhos
ao
velório,
sucata
de extintas exéquias.
Rimas
gastas
empalam
os
despojos, -
é assim
que se
honra
um poeta?
-Não
te
ergueram ainda um monumento -
onde
o som do
bronze
ou o grave granito? -
E já
vão
empilhando
no
jazigo
dedicatórias e ex-votos:
excremento.
Teu nome
escorrido no muco,
teus
versos,
Sóbinov(4) os
babuja,
voz quérula
sob bétulas murchas -
"Nem
palavra, amigo,
nem
so-o-luço".
Ah,
que eu saberia dar um fim
a esse
Leonid Loengrim!(5)
Saltaria
- escândalo estridente:
-
Chega
de tremores de voz!
Assobios
nos
ouvidos
dessa gente,
ao
diabo
com suas mães e avós!
Para que
toda
essa corja explodisse
inflando
os
escuros
redingotes,
e Kógan(6)
atropelado
fugisse,
espetando
os
transeuntes
nos bigodes.
Por
enquanto
há
escória
de sobra.
0 tempo é escasso
-
mãos à obra.
Primeiro
é
preciso
transformar a vida,
para cantá-la
-
em seguida.
Os tempos estão
duros
para o artista:
Mas,
dizei-me,
anêmicos e anões,
os
grandes,
onde,
em que
ocasião,
escolheram
uma
estrada
batida?
General
da força
humana
- Verbo
-
marche!
Que o tempo
cuspa
balas
para trás,
e o
vento
no passado
só
desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
o
planeta
está imaturo.
É
preciso
arrancar
alegria
ao futuro.
Nesta
vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a
vida e seu ofício.
(Tradução de Haroldo de
Campos)
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1.
Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP
(Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam
muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral
proletária.
2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em
1900).
3. Hotel em que Iessiênin se
suicidou.
4. O famoso cantor L.V.
Sóbinov (1872-1934) foi um dos participantes
da homenagem à memória de
Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926,
quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.
5. O papel de Loengrim,
da ópera deste nome, de Wagner, constituiu um dos grandes êxitos da carreira
artística de Leonid Sóbinov.
6. O
crítico P.S. Kógan (1872-1932), representante da crítica mais dogmática, com
quem Maiakóvski manteve freqüentes polêmicas.