sábado, março 19, 2005

Quando ele acordou suas mãos transpiravam muito, de um jeito anormal. O lençol empapado. O olho dele coçava. Durante o dia, o olho sempre coçava. Quando ficava nervoso, deste jeito de num saber as coisas, de num saber o que fazer, ficava enfiando o dedo no olho até ficar bem vermelho. Ele sempre lacrimejava. Ele sempre chorava também, mas dava pra fingir que estava lacrimejando. Às vezes ele chorava era de saudades das coisas, mas de vez em quando era medo. Muitas vezes ele chorava de indecisão ou de angustia. Ele não contava muito pra ninguém. Às vezes, quando chorava, era de saudades de coisas que não tinham acontecido. Às vezes era de medo das coisas nunca acontecerem, outras era de medo delas acontecerem mesmo. Chorava também porque se sentia incapaz. Porque tinha muita coisa bonita no mundo, e ele não conseguia dar conta de tudo. Chorava porque via as coisas bonitas escapando pelos seus dedos. Chorava porque às vezes era beleza demais. Porque às vezes as coisas grandes e bonitas são menos bonitas do que as coisas pequenas, que acontecem só uma vez ou outra e são tão preciosas. Chorava de medo de esquecer, de perder as coisas bonitas e pequenas. Ou de medo de deixar elas escaparem, de nunca ficar sabendo que elas poderiam ter acontecido, e daí elas não iam acontecer mesmo. Chorava de medo de nunca conseguir dizer pras pessoas o quanto gostava delas, o quanto elas eram importantes. Chorava de medo de que se conseguisse dizer, elas não acreditarem, ou passarem a não gostar dele por causa disso. Chorava de medo de não poder dizer a verdade sempre, e de não conseguir saber a diferença entre a hora de dizer a verdade e a hora de mentir. E de não saber mentir direito. De não saber a diferença entre um exagero e uma mentira. Das coisas que eram verdade pra ele não serem pros outros. Chorava porque às vezes ele dizia uma verdade, mas que no mundo das outras pessoas era uma mentira. Daí ele parava de saber a diferença entere a mentira e a verdade, e parava de saber o que dizer. Daí ele ficava com medo de falar, com medo de fazer tudo errado. Chorava de medo do mundo ser muito complicado pra ele, ou dele ser muito complicado pro mundo. Ou das pessoas serem muito complicadas umas com as outras, de não poderem ser sinceras porque às vezes se você gosta muito o melhor jeito de mostrar isto é dizer uma mentira, ou exagerar, ou não falar nada. Chorava de medo de não saber o melhor jeito de mostrar isto. Gostar das pessoas é complicado.
Às vezes, ele queria falar mas não dava certo. Ele pensava nas coisas e quando os pensamentos viravam palavras eles viravam outras coisas. E às vezes ele falava sem querer, porque não sabia o que mais podia fazer. Ou, depois, ele queria falar mas acabava ficando quieto. Daí então ele enchia a boca de unhas, que mordia até que os dedos ficavam todos lascados e sangrando. Às vezes tinha vontade de se bater também, mas isto acontecia menos. Ele ficava chateado porque as unhas que ele comia quando não sabia o que fazer demoravam muito pra crescer, e ele precisava muitas vezes comer as unhas. Ele queria que suas unhas crescessem mais rápido ou que ele tivesse mais unhas. Ou então ele queria saber o que fazer, porque daí ele não ia ter que comer tantas unhas. Ele queria que lembrar das pessoas fosse sempre bom, e nunca dolorido. Ele queria que as coiasas que ele falasse fossem sempre as certas, e as que ele fizesse também. Ele achava idiota que muitas vezes amar alguém fizesse as pessoas sofrerem, porque ele achava que era uma destas coisas que tinha que deixar as pessoas felizes. Mas ele também percebeu que, de um jeito ou de outro, sempre acabava deixando as pessoas tristes também. Ele amava muito as pessoas, e chorava por causa disso também. E também porque ele achava que as pessoas não entendiam isso muito. Ou se entendiam, não parecia que entendiam. Ele achava que ia ser bom se as pessoas conseguissem se comunicar melhor. Ele achava muito ruim isso das pessoas não se entenderem direito.
Mas ele também achava difícil isto de ter que pensar tanto nas coisas e delas darem trabalho. O sol já estava alto e ele tinha muito o que fazer. Mas o mundo era complicado demais, e nos seus sonhos tudo acontecia sem ele ter que pensar. Secou as mãos no lençol e dormiu. Deixou a vida pra depois.

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