Caros calouros,
Queria antes de tudo dar as boas
vindas a vocês a esta universidade. Vocês estão entrando em um curso que,
apesar de seus imensos problemas, tem muitas coisas boas para quem souber
aproveitar. Digo isto com a propriedade de quem ingressou no curso há algum
tempo, fez a graduação e a licenciatura, e hoje cursa a pós-graduação. Estudar
em uma universidade como a nossa deveria ser um direito de toda a população;
afinal, todos a financiam através do ICMS – um imposto regressivo, ou seja, os
pobres pagam proporcionalmente mais do que os ricos. Mas, como disse Kant: Todo
direito que não é universal torna-se um privilégio. E, infelizmente, é esta a
realidade das universidades públicas no Brasil hoje: são um privilégio para
poucos.
Assim, acredito que quando
ingressamos aqui assumimos também uma grande responsabilidade; de lutar para
que esta universidade seja, de fato, pública em todos os seus sentidos. Isso
significa questionarmos desde seu acesso – hoje negado à imensa maioria do povo
trabalhador, dos pobres, dos negros, pelo vestibular, que nada mais é do que um
filtro social travestido de uma prova que atestaria o “mérito” ou a
“capacidade” de estudarmos aqui. Mas também questionarmos todo o resto: o
conhecimento aqui produzido, seus critérios, a serviço de que(m) ele está, a
forma como tudo é decidido na universidade e até mesmo o acesso ao espaço
físico do campus Butantã.
Quando entrei aqui, conheci esta
responsabilidade e, a partir de meu contato com o movimento estudantil, o
movimento de trabalhadores, as greves em defesa da educação, fui
progressivamente vendo a importância destas lutas e a necessidade de participar
delas. Posso dizer que aprendi tanto ou mais fora das salas de aula do que
dentro delas, vendo como se dá na prática a disputa por um projeto de
universidade (ou, se quisermos usar um termo bastante expressivo, mas que é
escondido de nós porque afirmam de maneira cínica ser “ultrapassado”, fui vendo
como se dava a luta de classes dentro da universidade).
Foi por causa desta
responsabilidade que fui preso, no dia 8 de novembro de 2011, junto a outras 71
pessoas, que incluíam estudantes, funcionários e apoiadores, na reintegração de
posse levada a cabo na reitoria da USP por 400 policiais fortemente armados. A
ocupação da reitoria da USP era contra a presença da polícia militar no campus,
e os motivos dos estudantes foram sistematicamente deturpados pela mídia, pela
reitoria e pelo governo. Alckmin, após nossa prisão, disse que precisávamos de
uma “aula de democracia”.
Antes de entrar na USP eu
acreditava, como talvez a maioria de vocês ainda acredite, que a polícia servia
para proteger as pessoas. Contudo, descobri já no meu primeiro ano que seu
papel é bem distinto: em uma sociedade dividida em classes sociais, onde alguns
sobrevivem da exploração do trabalho de muitos, ela serve para manter as coisas
tal como são: os pobres em seu lugar. Não à toa, a polícia de São Paulo é uma
das mais assassinas do mundo. Aqui
na USP ela entrou para reprimir o movimento estudantil e de trabalhadores, para
legitimar medidas autoritárias e arbitrárias como a demissão inconstitucional
(pois foi feita sem sequer um processo no ministério do trabalho e por motivos
políticos) do diretor do Sindicato de Trabalhadores da USP (Sintusp), o
Brandão; ou a expulsão recente de seis estudantes que lutavam por mais vagas na
moradia, um direito elementar de permanência estudantil que é a única forma de
garantir o acesso de muitos à universidade. Contudo, fora da universidade a
polícia é ainda pior; logo aqui ao nosso lado, na favela da São Remo, vizinha à
USP, podemos ver exemplos cotidianos disso. No carnaval de 2007, Cícera, uma
trabalhadora terceirizada da lanchonete
da Faculdade de Educação, recebeu uma “bala perdida” de um policial e morreu. A
prova do crime “sumiu” dos arquivos da polícia e seu assassino foi inocentado
pelo Estado. Neste ano, o adolescente Genilson, de apenas 15 anos, que era
aluno de uma amiga minha em uma escola do Rio Pequeno, foi assassinado pela
polícia também na São Remo. São pequenos exemplos de uma prática cotidiana de
uma polícia que vem matando uma média de 16 pessoas por dia nos últimos meses,
em especial a juventude pobre e negra das periferias (os mesmos que não podem
estudar na USP).
Porque eu sou contra a presença
desta polícia no campus, porque eu sou a favor da democratização da
universidade, porque eu sou contra a violência praticada pela polícia nas periferias,
porque eu defendo a liberdade de organização política de estudantes e
trabalhadores, eu estou sendo acusado de forma completamente injusta pela
reitoria e pelo ministério público. Aplicaram-me uma suspensão de cinco dias –
e a outros colegas de quinze – com base no “código de ética” e em um decreto
(52.906 de 1972 no Estatuto da USP, recomendo a leitura) que data da ditadura
militar e proíbe na universidade manifestações políticas e “atentados à moral e
aos bons costumes”. A aberração jurídica da denuncia do ministério público é
gritante, com acusações absurdas de formação de quadrilha. Pois é assim que
tratam agora quem não se cala e se manifesta contra o que é injusto.
Escrevo esta carta para vocês por
alguns motivos: para esclarecer os motivos destas punições e a arbitrariedade e
injustiça da acusação que pesa sobre mim e tantos outros; para chamar a que
vocês, ingressando na universidade, não se esqueçam que hoje têm acesso a um
privilégio que deveria ser um direito, e assumam a responsabilidade por isso;
que saibam que o primeiro passo para lutar por democracia nesta universidade é
a defesa dos que hoje são perseguidos por lutar por isso. E, por fim, e talvez
mais importante: para que não tenham medo. Este é o principal objetivo de
nossos acusadores: calar a voz dos que lutam. Intimidar, assustar e acuar todos
os que possam protestar contra as arbitrariedades, autoritarismo e injustiça.
Não se calem, não se resignem, não se tornem apáticos, e nem sejam cooptados
pelos “privilégios” de estudar na USP. Por isso, chamo todos a se mobilizarem
contra as punições hoje em curso, pela reintegração dos estudantes já expulsos
e de Brandão.
Coloco-me à disposição para
conversar com todos os que queiram.
Fernando Pardal.