Me perguntaram se tive raiva
dela alguma vez. Raiva por ter partido, nos deixado com o sofrimento de sua
ausência. Me lembrei de um simpósio que fui uma vez, sobre suicídio. Uma
palestrante era uma psicanalista cujo filho tinha se suicidado, e ela disse que
ela via dois filhos: o que ela amava, que havia perdido, e aquele do qual tinha
raiva, que tinha levado ele. É uma resposta tão “fácil” quanto falsa. Não havia
duas Camilas, mas apenas uma. Era a mesma pessoa que sorria mansamente e me
falava com a voz macia e a que se contorcia em pesadelos; que me amava e que
brigava comigo. Era a sua dor que a fazia ser tão sensível à dor alheia. Era a
sua vontade de viver que fazia sua dor tão insuportável. Não há a Camila que eu
amei sem o sofrimento que ela carregou; sua vida foi uma luta, até o fim. Ela
era uma pessoa apenas, e quando me perguntaram se tive raiva dela a minha
resposta foi não: eu nunca tive raiva dela por ter partido.
A vida de uma pessoa tem de ser
sua. Os sofrimentos que este mundo podre incutiu a marteladas não eram dela, ao
mesmo tempo que eram apenas dela e de mais ninguém. Eram imensos, e eram-lhe
alheios; eram alheias suas causas, suas motivações e suas soluções. Ela nunca
os dominou, e ninguém pôde ajudá-la suficientemente nesta tarefa que provou-se
difícil demais para que fosse realizada. Os suicidas carregam uma dor que não é
sua. Ainda que tragicamente seja sua, e de mais ninguém. Mas, enfim, a vida era
dela. Com todas as dores que ela tinha e que não podíamos compartilhar, como
poderia crer, em qualquer momento, que eu tivesse o direito de censurá-la por
sua decisão derradeira? Não seria isso o mais egoísta dos gestos?
Ela me deixou as perguntas,
pouco antes de partir. Perguntou-me se eu sentiria sua falta se ela morresse; e
perguntou-me se eu achava egoísta o suicídio. Respondi a única coisa que
poderia. Sim, claro que sentiria. E, obviamente, àquela altura eu era
completamente incapaz de saber o quanto sentiria. Às vezes, acho que ainda sou
incapaz de saber o quanto ainda sentirei sua falta enquanto eu viver. Quanto à
outra pergunta, que mostrava que a decisão estava próxima, ainda que eu tenha
sido tristemente incapaz de ver, eu respondi também a única coisa que poderia,
que é o que disse acima. A vida de uma pessoa lhe pertence, e ela deve viver
para si, e não para os outros. Foi o que eu disse, mas hoje percebo com mais
clareza que não é assim. Na verdade, o que acontece é que vivemos em um mundo
tão doente que nem nossa vida nos pertence, apenas algumas partes dela, e acho
que pelo menos nossa morte deve nos pertencer. É isso o que eu lhe diria hoje.
Pois se a vida da Cami lhe pertencesse plenamente, ela a teria levado adiante,
a teria vivido como ela merecia viver. Mas não, apenas pedaços lhe pertenciam.
Outros pertenciam àquele sofrimento imensurável, que não era dela também. E ela
lutou, lutou com determinação para conseguir mais pedaços que lhe pertencessem.
E depois de muito lutar, a resposta que pôde dar foi a morte. Uma resposta que
nós, que ficamos, passaremos os dias a lamentar. Que sempre nos deixará a
pergunta: poderia ter sido outra a reposta para tanta dor?
Até
o fim ela levou a pergunta: posso morrer? É meu direito causar este sofrimento
a quem me ama? E até mesmo: será que sofrerão? Sim, ela nunca vai poder saber o
quanto, mas sofremos. Eu e outros, sofremos a cada dia. E senti raiva já por
várias vezes, nunca dela, mas de mim, por não ter podido ajudá-la mais. É uma
raiva injusta também, porque a verdade é esta: não pude, não poderia. Se
pudesse, teria feito qualquer coisa a meu alcance. Qualquer coisa, se soubesse
que a morte estava ali na esquina. Mas ela sempre esteve, e sempre estaria se
ela tivesse sobrevivido. Se as coisas fossem diferentes, eu estaria ali naquela
noite derradeira. E provavelmente não teria sido a derradeira, e nem posso
saber por quanto tempo mais ela viveria. Mas não teria sido isso que a
salvaria. É muita pretensão ter tanta raiva de minhas ações. E me disseram uma
verdade dolorosa: sentimos culpa porque é mais fácil do que enfrentarmos o
sentimento da impotência.
Mas
se eu tivesse que responder de novo, responderia o mesmo para a pergunta que
ela me fez: pode partir, se é esta a sua decisão. Faria de tudo para que ela
decidisse outra coisa, mas a decisão não é minha. Sua morte, pelo menos, lhe
pertence. As visões dogmáticas e carcomidas de mundo fazem isto: culpar o
suicida por sua impossibilidade de levar a vida adiante, ou sua decisão de não
levar. Tiram-lhe o direito de viver e, quando consegue surrupiar a seus
carrascos ao menos o direito da morte, acusam-no também por isso. Enterram-no
em um lugar distinto como marca do estigma, reservam-lhe suas fantasias
metafísicas de punições eternas. Ignoram que é somente quando a sociedade chega
ao extremo da dor e sofrimento que pode causar a uma pessoa, que a morte se
torna uma saída factível. Os escravos se matavam contra sua escravidão; os
operários chineses se matam contra sua escravidão. Quando a pessoa se mata é um
ato de ódio, simultaneamente de impotência e de resistência. De indignação e de
impossibilidade.
Havia
apenas uma Camila, e ela me foi tirada. Quem tomou a decisão de tirá-la de mim
e de todos os outros que a amavam foi ela mesma; foi uma decisão à qual ela
chegou por um caminho longo e tortuoso, e esta decisão não pode ser
compreendida sem se olhar para este caminho. Não há culpa, nem raiva, nem nada
que pese sobre seu cadáver ou sua memória. Talvez houvesse, se eu não tivesse
acompanhado uma parte de seu caminho até a decisão, compreendesse menos porque
ela a tomou. Há a tristeza inelutável de não ter vencido a batalha contra as
dores que lhe impingiram. Quem pode julgar sua ação? Quem pode julgar a ação
dos que a amavam, que lhe eram próximos, e que foram incapazes de antever? De
ajudar? Quem poderia fazer diferente? Fica-nos uma culpa, mas não é nossa. É
que é impossível ela ficar totalmente para quem lhe cabe, que é todo um mundo a
ser vencido, então temos que tomá-la para nós para poder lhe dar um fim,
transformá-la em algo.
Fica
um gosto amargo na vida. Que eu luto, cotidianamente, para transformar em
consciência cristalina de que a vida de quem ficou tem que ser luta permanente,
contra a morte, contra a expropriação das vidas que acontece cotidianamente. No
sentido mais amplo que há. A luta contra as dores que matam, e matam pessoas que
mereciam a vida. Todas as pessoas mereciam a vida, mas acontece que em
diferentes graus, todas são expropriadas dela. Privadas de viver suas vidas
plenamente por um mundo que nos arrasta por caminhos que não escolhemos, que
não podemos escolher. Dores que embrutecem, que castram a vida de tantos que
ficam. Há quem não se suicide, e ao longo de décadas morre e definha aos
poucos, nem sempre vivendo, mas sobrevivendo como pode. Privados de suas
próprias vidas. Há um ditado em inglês que diz: “It’s better to burn out than
to fade away”. Algo como: É melhor incandescer do que esvanescer; é melhor
queimar intensamente do que esmorecer aos poucos. Camila era boa demais em um
mundo ruim demais. Sua morte é um alerta de que este mundo nos priva do que há
de melhor nesta vida, que é vivê-la. Ela levou consigo um pedaço de minha vida
também; o gosto amargo que fica é também um embrutecimento, uma necessidade de
se anestesiar do sofrimento para continuar lutando; tê-lo no coração e não se
paralisar por ele. Torna-me mais sensível, mas também mais bruto. A têmpera que
é necessário ter para enfrentar os tempos que virão é uma faca de dois gumes.
Pois outro alerta que ela me deixa é o de não estar anestesiado, de sentir o
outro; uma lição profunda que me deu dia após dia e que não posso esquecer.
Penso sempre nos grandes que nos antecederam,
que nos legaram as melhores armas para nossas lutas. Suas vidas foram provações
atrás de provações. Prisões, perseguições, mortes, exílios. Marx viu a filha
morrer de fome. Lênin viu, ainda jovem, seu irmão ser enforcado pelo tsarismo.
Trotski viu sua família assassinada, fugiu ao redor do mundo, para morrer
assassinado em sua casa. Rosa foi brutalmente assassinada com a conivência de
seus antigos companheiros. Embruteço, mas permaneço. O gosto amargo desta morte
é uma cicatriz que levo em uma luta que não é só minha, da qual sou uma parte
ínfima; da qual ela também foi e ainda é parte, e na qual carrego o melhor de
sua herança. É uma luta de toda a humanidade contra nosso embrutecimento
coletivo, contra a expropriação da vida, contra a morte como uma saída
factível. Para libertar. Hoje o tempo ainda é de fezes e maus poemas. Camila
morreu na escuridão. Eu me sinto vivo assim: na escuridão. Mas é esta
consciência que tem de nos levar para frente. Ainda haverão outros, muitos e
muitos outros; eles poderão viver plenamente sobre um mundo pavimentado por
nossa luta. Seria confortável alimentar-me de fantasias, mas não; abro os
olhos, deixo-os bem abertos. Levo-a neles, a cada dia, a cada combate. Não
podemos nos dar o luxo de nos deixar abater.