Toda cicatriz começa com uma ferida. Quanto mais profunda
for a ferida, mais marcante será a cicatriz. Uma marca, irremovível, que muda
para sempre sua feição; que deixa à mostra, visível e exposta, uma parte de
você. Que coloca ali aos olhos do mundo uma pergunta: de onde vem esta marca? O
que ela representa? O que ela muda?
As feridas podem ser omitidas. As
cicatrizes não, estão estampadas em nosso corpo. Cobrimo-las com roupas,
adereços. Para trabalharmos, para podermos estar em uma sociedade que finge não
haver feridas, para evitarmos as perguntas, cobrimo-las com band-aids, com
mentiras.
Feridas em nosso psiquismo deixam
cicatrizes também; algumas, ainda que mais visíveis e indisfarçáveis, são mais
fáceis de cobrir com mentiras. Quem vê nossa mente em funcionamento raramente
se pergunta como suas marcas surgiram. Nossos segredos são nossas feridas,
nossas cicatrizes estão ali: visíveis e invisíveis para quem quer que nos veja.
A nossa história nos torna, em um mundo doente e distorcido, tal qual um
retrato de Dorian Gray, uma forma disforme por baixo de uma fachada de
mentiras.
Quando a morte em sua nudez me
rasgou uma ferida pulsante e aberta, algumas pessoas me abriram a história de
suas cicatrizes. Como as crianças que comparam seus ferimentos, eu ouvi sobre
as feridas, invisíveis em um mundo onde há tanta dor, que quase toda ela nos
passa despercebida.
Aline, no dia em que bebia para
aplacar a dor – o álcool, no fim das contas, assim como todas as drogas de
hoje, só pode ter tamanha popularidade explicada pelo anestesiamento do corpo e
da mente que ele promove – me revelou, com um sorriso torto, entre uma cerveja
e outra que servia em nossa mesa, sua própria ferida; invisível. Eu lhe abri a
minha primeiro: uma pessoa que amava de uma forma ainda inaudita havia morrido,
colocando para fora em um último ato de sofrimento o seu silêncio final; enfim,
as dores sobrepujaram a força para vencê-las. Aline revelou-me que havia
tentado pôr fim às suas próprias dores também; cinco vezes. Me deparei com o
choque de pensar nas cicatrizes invisíveis que desfilam todos os dias diante de
nossos olhos anestesiados. Pouco depois, ainda com a ferida aberta, ouvi uma
palavra de consolo com uma lógica absurda, tanto quanto o próprio mundo que a
gerou. “Você vai conseguir passar por isso. Eu já passei quatro vezes.” Uma
pessoa que amo, que viveu perto de mim a vida inteira. Quatro pessoas de sua
família cometeram suicídio. Andou com suas cicatrizes coladas aos meus olhos
por décadas, e eu simplesmente não vi as feridas que as causaram. Por onde quer
que se repare, não com os olhos anestesiados pela demente naturalização da dor
de um mundo torpe, mas com os olhos de quem possa vislumbrar um mundo onde
possamos ser humanos de fato, veremos as cicatrizes deixadas por tantas e
tantas feridas. Ignoramo-las, dia após dia, para podermos prestar atenção ao
que é desimportante e que nos permite sobreviver. E agradecer – pois não nos
resta outra saída – a cachaça de graça que a gente tem que engolir.
Quero sentir no corpo a dor que
me mata por dentro. Foi isso que ela me disse uma vez. Sentia dor demais para
caber dentro de si; dor demais para uma pessoa. Cicatrizes cobriam sua pele,
cobriam sua vida. Eu me marquei com seu nome, querendo me ferir, querendo
deixar em mim a cicatriz de sua morte, de sua vida apagada por um mundo triste.
Ela ia ao encontro da dor, foi à Bósnia ver até onde pode chegar a barbárie
humana. Um mundo tão doente, em que não vemos as feridas e nem mesmo as
cicatrizes, uma verdadeira máquina de destruição humana em curso. Campos de
estupro em massa, cerca de 70% da população masculina dizimada. Uma cicatriz
gigante, que rasga a feição de um povo, de gerações. Ela foi, para ver o
sofrimento de perto.
Uma cicatriz, hoje quase apagada,
foi nossa primeira aliança. A cicatriz que fiz em mim, hoje ainda uma ferida,
fechando-se, foi meu presente de despedida. Para mim mesmo, pois seus olhos
fechados, matéria inerte em decomposição, já não veem mais nada. A dor foi boa,
pois eu sentia no corpo a dor que me mata por dentro. Mas foi curta e passou. A
ferida no corpo está cicatrizando. A ferida em minha mente permanece aberta,
pulsante. Uma parte da dor foi enterrada com ela; uma parte que a ninguém era
acessível. Outra, nos deixa de herança; uma herança difícil de administrar.
O desafio é permanecer de olhos bem abertos. Ver
as feridas, as cicatrizes. Questioná-las, enfrentá-las. E não deixar que elas
nos paralisem. Não deixar que elas nos matem. Fazer das cicatrizes a pintura de
guerra contra o mundo que as fabrica em uma escala imensurável. Nossas
cicatrizes são pequenas diante do mundo. E o mundo, pequeno diante de tantas
feridas. Perdemos batalhas a cada dia. E destas derrotas, precisamos pavimentar
o caminho para vencer. Não para nós mesmos, já desfigurados por tantas marcas.
Mas para aqueles que ainda não foram marcados, feito gado, com o ferro em brasa
de um mundo que se apropria daquilo que poderíamos ser para nos levar ao
abatedouro. Quero tomar suas cicatrizes para mim, para erguê-las como uma bandeira
vermelha de indignação. Sua voz, mesmo extinta, não se calará diante de tanta
dor. Carrego estampada na mente a frase de nosso camarada, que não teve poucas cicatrizes em sua luta: “aqueles que lutam com mais
energia e persistência pelo novo são os que mais sofreram com o velho.” E a
vida dela, a morte dela, minha cicatriz.